Torne-se perito

Vladimir Pinta

Vladimir Pinta não consegue parar de tocar saxofone. Nos anos 60, tocava nas ruas de Praga. Depois da invasão soviética mandaram-no para casa. Em 1989 pegou de novo no saxofone, para comemorar, e não parou. Toca na rua e é, para os checos, um símbolo de liberdade. Por Paulo Moura, em Praga

a Praça da Cidade Velha, Stare Mesto, Praga, 6 da tarde. Um homem de barba branca e chapéu de safari africano toca saxofone ao lado da estátua de Dvorak. Está uma pequena multidão à sua volta. São turistas, uns vão partindo, outros chegando. O homem tem um gravador no chão, a reproduzir sons da orquestra de Glenn Miller. Acompanha e faz solos sobre o fundo musical roufenho e indistinto. Contorce-se, agitando o instrumento prateado e antiquíssimo, deixando-se conduzir por ele numa dança enérgica e voluptuosa. Por vezes, pára, levanta cabeça e grita: "Pennsylvania six-five thousand!". E volta a tocar, de olhos fechados.Os turistas divertem-se. Filmam, empurram as crianças a depositar uma moeda na caixa do saxofone, aberta no chão. Alguns mandam as namoradas abraçar-se ao músico, para as fotografarem com pose e sorriso de "Recordação de Praga". Vladimir Pinta, é assim que se chama o músico de rua, continua a tocar, sem se importar nada que o tomem por um figurante de postal ilustrado. Durante duas horas seguidas, não pára um minuto, saltando das Big Bands para os standards do Be-bop, e a seguir para o Besame Mucho, e depois o Volare e Oh Sole Mio. Troca o saxofone pelo trombone, canta, dança, rodopia como tivesse electricidade no corpo.
"Ele toca de manhã à noite", diz a mulher, Daniela, loira, 26 anos mais nova. "Acorda e começa a tocar. Depois vem para aqui tocar. À noite, em casa, toca até ir para a cama. Nunca pára".
Os turistas ficam algo hipnotizados a olhar para Vladimir. Ele parece estar em transe e eles não sabem o que pensar. Ele faz tanto espalhafato, que pode muito bem ser um louco das ruas de Praga. Mas o profissionalismo com que está afixado o cartaz, o sorriso sóbrio da assistente gerindo o merchandising, a própria qualidade da música dissuadem essa interpretação. Pinta está simplesmente a divertir-se à grande.
Daniela tem uma pilha de cds na não, que tenta vender a quem passa. Os Cds são gravados por Daniel, o filho mais velho do casal, que concluiu o curso de Direito e vai este ano para Santiago de Compostela fazer uma pós-graduação. Toda a família trabalha na mesma empresa - as performances do pai - e vive disso.
Vladimir Pinta, 75 anos, é o artista de rua mais conhecido de Praga. Já tocou na Ponte Charles, antes de ter sido expulso pela autarquia. Agora vem todos os dias para a Praça da Cidade Velha, de comboio desde Karstein, a 30 quilómetros. Daniela vem com ele. "Sou a sua agente de segurança". Guarda a aparelhagem na Igreja de St Nicholas, ali ao lado, paga 350 coroas (17 euros) de imposto pelas duas horas de performance na rua, ao lado da estátua de Anton Dvorak, de quem diz ser descendente directo. Os autóctones já não páram para o ouvir. Mas gostam de verificar que ele ainda está lá, no seu lugar. Vladimir Pinta é um símbolo. Enquanto ele tocar, há liberdade no país.
O saxofone
Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, Vladimir tinha 12 anos e uma doença grave. A mãe pensou que ele ia morrer. O pai fugira, mal os nazis anexaram a Checoslováquia, deixando a mulher em Praga, por estar grávida. Vladimir passou fome durante a ocupação alemã e continuaria a passar depois. A família, por ser católica, sempre viveu à margem das benesses do regime. Vladimir não teve direito a estudar. Foi trabalhar na construção civil. Ao mesmo tempo, à sua custa, estudava para ser professor primário e aprendia a tocar saxofone. Lembrava-se de ouvir na rádio, quando era criança, os músicos americanos e também as grandes orquestras checas, que proliferavam antes da guerra e até os comunistas terem tomado o poder, em 1948. A partir dessa altura, o jazz passou a ser considerado uma influência nefasta do Ocidente, e a ser perseguido.
Em 1953, Vladimir conseguiu um emprego numa escola para crianças órfãs, abandonadas ou deficientes. Alguns anos depois, começou a tocar na rua e em bares. Acumulava os dois salários e passou a ter o que se poderia considerar, na época, uma boa via. A verdadeira vida boémia.
Entravam os anos 60 e Praga era uma cidade viva e excitante, para os padrões do mundo comunista. O jazz voltava a ser tolerado e a estar na moda. A Rádio de Praga tinha uma orquestra residente e vários trios e quartetos tocavam regularmente no clube Reduta, que ainda hoje é o mais importante na cena jazística da cidade. Um desses grupos era o Junior Trio, onde o contrabaixo estava a cargo do jovem Miroslav Vitous, que em 1968 se exilaria nos EUA, onde se tornaria famoso.
Várias orquestras tocavam nas ruas de Praga, na Cidade Velha, na zona boémia de Mala Strana e na praça Venceslau. Vladimir fazia parte de uma dessas Big Bands. Foi lá que conheceu a sua primeira mulher, que tocava trompete.
"Eu era um grande valdevinos e ela muito ciumenta", recorda Pinta. "O casamento não se aguentou muito tempo. Era muito louca a vida em Praga, naquela época". A segunda mulher era italiana. Por causa dela, Vladimir viajou várias vezes para Itália, onde conheceu músicos e tocou em bares.
Entre os 25 e os 35 anos, Vladimir Pinta saboreou a vida minuto a minuto. Era um homem bonito e talentoso, que sabia cultivar uma aura de artista boémio. Gostava de vestir-se de forma estapafúrdia. Usava chapéu de cowboy, bonés militares antigos ou qualquer adereço que trouxesse das suas viagens. As mulheres não lhe resistiam. Ganhava muito dinheiro com a música, mas gastava tudo na vida nocturna ou a ajudar as crianças da escola onde ensinava. Comprava-lhes roupa, livros, instrumentos musicais. Não tinha qualquer ambição material. Ninguém tinha, naquela época, nesta parte do mundo. Só lhe interessava o prazer, a arte, o afecto. O regime vivia os seus dias de graça, proporcionando uma consciência de justiça colectiva e tolerando uma dose individual de rebeldia. Os olhos azuis de Vladimir Pinta transportam ainda essa ideia específica de felicidade, que hoje nos é virtualmente incompreensível.
Quando, em 1968, Alexander Dubcek começou a experimentar o "socialismo de rosto humano", Pinta estava de alma e coração a seu lado.
"Por ele, até me inscrevi no Partido Comunista", conta agora. "Dubcek era um santo. Quando o demitiram, depois da invasão dos tanques, eu saí também do partido. Mas eles vingaram-se".
Sem música
Durante a "normalização" pós invasão de Agosto de 1968, Vladimir teve de deixar de tocar. Quase todos os clubes fecharam, era proibido actuar nas ruas. Pinta entrou em depressão profunda. A mulher deixou-o, a ele e ao país. Fugiu para Itália. Ele estava demasiado triste para fugir.
"Pensei matar-me, imolar-me pelo fogo, como Jan Palach [o estudante que se incendiou na praça Venceslau, em protesto contra a intervenção soviética]. Mas até isso me parecia vão. Não serviria de nada", diz Vladimir. "Todos os checos quiseram imitar Palach". Mas talvez Vladimir tenha sofrido ainda mais do que outros.
Tentou dedicar-se aos seus alunos, mas começou a falar-lhes de Cristo, e foi expulso da escola.
Fechava-se em casa, mas não conseguia tocar sozinho. Por vezes, era convidado para actuar nalguma festa clandestina. Aí, excedia-se. Tocava com tanta emoção, que se tornava penoso ouvi-lo.
Foi numa dessas festas que Daniela o conheceu. Ela tinha 20 anos e ele 46. "Vi-o a tocar e fiquei toda arrepiada, de comoção", recorda ela. "Na altura, tinha planos de casar com o meu namorado, que era da minha idade. Mas o Vladimir veio falar comigo no fim do concerto. Convidou-me para passar um fim-de-semana na casa de campo de um amigo... engravidei logo. Depois casámos. Eu tinha tantos sonhos! Afinal, Vladimir foi o meu sonho".
Como a música o angustiava, Daniela convenceu-o a por de lado o saxofone. Vladimir começou a pintar. Daniela vinha para a rua vender as paisagens de Praga do marido. Daniel nasceu e, logo a seguir, a mãe engravidou outra vez. "Como sou católica, e Vladimir também... não tomava nada. Eu amava-o, mas não era fácil viver com ele. Sentia-se frustrado, era rezingão. A certa altura, o meu antigo namorado, que fugira para o estrangeiro depois de 68 e enriquecera, regressou e quis que eu voltasse para ele. Mas eu amava o Vladimir. Sempre amei".
Vladimir renasceu em 1989. Com a Revolução de Veludo, as pessoas vieram para a rua. Durante meses, Praga foi uma festa permanente. Vladimir pegou no saxofone. Disse à mulher: "Os bolcheviques foram-se embora. Ah! Agora, vou-me divertir".
Trouxe o saxofone e o trombone para a rua e desatou a tocar de manhã à noite. Até começou a cantar, o que nunca tinha feito. Aos 57 anos, recomeçou a vida. Veio para a rua comemorar a revolução, a democracia e a liberdade, e nunca mais parou. Não consegue parar. É como se em cada dia tivesse de recuperar os anos que não viveu, numa corrida frenética atrás de si próprio e do seu destino. "Ao princípio ficava muito preocupada, ele parecia louco. Tive medo que lhe desse alguma coisa. Mas habituei-me", diz Daniela. "Ele tem a energia de um adolescente. E o optimismo também. Está sempre agarrado ao saxofone, mas eu já não lhe digo nada. O Vladimir tem de tocar".
Fá-lo como quem cumpre uma obrigação, e não pára, como se temesse não poder recomeçar. Não quer perder um único momento de prazer, de alegria.
A ditadura caiu há quase 20 anos, a desilusão pós-comunista já domina o discurso de toda a gente. As pessoas estão desencantadas com a liberdade. Não é o caso de Vladimir Pinta. Ele, que sofreu mais do que qualquer um, tem agora de divertir-se mais do que todos.
Amanhã:
David Glabish, o viajante
que já foi ministro

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