Torne-se perito

Ruy Belo

Ser português é uma circunstância de nascimento. Portugal "verdadeiramente não existe", escreveu o poeta Ruy Belo, numa das 10 cartas que o P2 hoje revela em fragmentos, nos 30 anos da sua morte. Morreu cedo mas na sua obra tem muitas vidas. Vem aí uma edição nova, um ciclo de filmes, traduções e talvez música. Por Alexandra Lucas Coelho (textos) e Rui Gaudêncio (fotos)

a Lá está o nome bíblico, já pintado a branco no asfalto e com setas antes das rotundas, Monte Abraão, subúrbio do subúrbio. Há 30 anos, jogava-se à bola nos campos por trás destes prédios. Agora por trás destes prédios há mais prédios, Queluz é subúrbio de Lisboa e Monte Abraão é subúrbio de Queluz, mas em algumas ruas ainda se respira.
Esta não tem saída, o que quer dizer que não tem trânsito. Há arbustos em flor, uma palmeira soberba, plátanos. No Verão, como agora, as janelas dão para copas verdes e acesas, por alturas do quarto andar.
Não é o "quarto andar sem elevador" que Ruy Belo subia "com uma pedra no peito", como diz uma das 10 cartas de que o P2 hoje revela passagens.
Aí era o andar de solteiro, em Lisboa. Aqui é o andar para onde veio já casado com Maria Teresa Belo.
E foi aqui, no Monte Abraão, que Rui de Moura Ribeiro Belo - nascido a 27 de Fevereiro de 1933, em S. João da Ribeira, Rio Maior - foi encontrado morto a 8 de Agosto de 1978, deitado em cima da cama. Edema pulmonar, diz a certidão de óbito.
Tinha apenas 45 anos, mas parece ter vivido muitas vidas e mortes nos seus oito livros de poemas, da fundação de Roma ao aeroporto de Barajas, de Córdoba lejana y sola àquele grande rio Eufrates, de Jerusalém ao Alto da Serafina, de Lucas 21, 28 a Marilyn, de Pedro e Inês ao rapaz afogado no mar de Vila do Conde que por um triz tantas vezes não foi ele, Ruy Belo.
E vem ao de cima num longo poema, Fala de um homem afogado ao largo da Senhora da Guia no dia 31 de Agosto de 1971:
"Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das
profundidades
e os corpos de incontáveis
pescadores
como o jovem lourenço
são miguel
que aqui se despediu dessa vida
de aí
a cinco salvo erro de janeiro de
sessenta e cinco".
À memória desse afogado dedicou Ruy Belo País Possível, a única antologia que fez dos seus poemas. Acreditava num país possível, que não foi Portugal. Portugal não quis saber.
E a obra de Ruy Belo continua vívida, por vezes urgente.
"Se a sua poesia não tivesse existido, tudo o que havia de essencial na vida espiritual do meu tempo teria ficado sem testemunhas", escreveu em 1999 António Alçada Baptista, na revista Relâmpago.
É um tempo bipolar, entre Deus e deus, recolhimento e comunhão, a alegria do mundo e a sua margem.
Mas os leitores que vierem depois reconhecerão sempre o seu próprio tempo, com tudo o que nele há de opressivo e sôfrego, exaltante e sem remédio, e esses leitores têm vindo, em edições lentas mas sucessivas.
Publicados na Ática, na Moraes, na D. Quixote, na Inova e na Presença - que recebeu ainda das mãos do poeta a versão completa do último livro, Despeço-me da Terra da Alegria, e depois da sua morte reeditou os anteriores um a um -, os livros de Ruy Belo foram reunidos em 2000 pela Assírio & Alvim num volume único, Todos os Poemas. Esgotado esse, optou-se por uma reedição em três volumes, que também já não se encontram nas livrarias.
Agora, coincidindo com os 30 anos da morte, está a ser preparado um novo volume único para sair em Outubro. "Terá o mesmo conteúdo dos três volumes, acrescentado de um fac-símile com poemas manuscritos", diz o editor Manuel Rosa.
Quatros filmes
O dia dos 30 anos é hoje. Em Agosto a Cinemateca está fechada. Mas exactamente daqui a um mês fará um pequeno ciclo de quatro filmes relacionados com a poesia de Ruy Belo.
"Foi um poeta importantíssimo, não só pelo que escreveu mas por ter marcado a poesia que se faz agora", diz Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa, de quem partiu a iniciativa. "Associo sempre muito a poesia dele ao cinema e propus à Cinemateca a passagem dos filmes, com os poemas ditos antes. A ideia é ter um actor, e eu e a Teresa Belo gostávamos que fosse o Luís Miguel Cintra."
Cintra escolheu e gravou poemas de Ruy Belo em duas ocasiões. Na última, disponível num áudio-livro da Assírio & Alvim, parece ter encontrado a voz desta poesia.
Recebida a proposta para o ciclo na Cinemateca, o sub-director Pedro Mexia fez a escolha dos filmes que vão passar de 8 a 12 de Setembro. Dois deram nome a poemas de Ruy Belo (Esplendor na Relva e Muriel), dois têm actores que Ruy Belo nomeia (In a Lonely Place, com Humphrey Bogart, e Niagara, com Marilyn Monroe).
"Vamos ainda fazer uma sessão dia 24 de Setembro na Casa Pessoa com Gastão Cruz, Fernando Pinto do Amaral e Pedro Mexia a falarem da importância da poesia de Ruy Belo para a poesia deles", anuncia Inês Pedrosa. "Depois um actor dirá poemas e será projectado um trabalho em vídeo que [o fotógrafo] Duarte Belo tem sobre o pai."
Esta projecção é possível, sublinha a directora, porque as três juntas de freguesia responsáveis por zonas de Lisboa onde Pessoa morou se juntaram para "equipar o auditório da Casa com condições para espectáculos e cinema".
O que talvez possa ser uma inspiração. Recuperada para abrir ao público, a casa onde nasceu Ruy Belo, em S. João da Ribeira, continua fechada.
Na noite da sessão-recital, a Casa Fernando Pessoa vai inaugurar uma "Árvore das Palavras, cujas folhas começarão por ser poemas de Ruy Belo", adianta Inês Pedrosa.
Vinte poemas e música
Entretanto, o pessoano Richard Zenith, também escritor e tradutor, prossegue a tradução de Ruy Belo para inglês, que neste momento já anda "ao redor de 20 poemas". Victor Mendes, da Universidade de Massachussets, convidou-o para fazer uma antologia. "Eles têm uma série onde vai sair lírica de Camões que eu traduzi e o Victor gostava muito de ter uma antologia de Ruy Belo", explica Zenith. Conta concluí-la em fins de 2009.
Algumas das traduções de Zenith para inglês já saíram no site Poetry International e na revista Colóquio Letras, da Fundação Gulbenkian - que está agora a organizar um número especial dedicado a Ruy Belo.
A edição estrangeira deste poeta resume-se, até ao momento, a dois livros em francês e dois em italiano. Tudo o mais são poemas incluídos em colectâneas.
Há projectos de tradução em Espanha, país com o qual a vida e obra de Ruy Belo têm uma intensa relação. A Universidade Complutense de Madrid, onde o poeta foi leitor de português entre 1971 e 1977, prepara uma homenagem com a colaboração de críticos portugueses e espanhóis.
Em Portugal, o compositor Pedro Amaral tem na cabeça uma obra em torno de A Margem da Alegria, o poema-livro inspirado no amor de Pedro e Inês ("Quando já pelos prados o orvalho / aspergira as inúmeras pétalas das primeiras flores / e corriam as lágrimas ao longo da já longa idade / de homens onde o rio da alegria já secara há muito / talvez suponho eu no tempo dos primeiros salmos admoestadores / em que os olhos se abriam para o medo das mensagens mais funestas / quando o mel se multiplicara já pelos cortiços sob os novos cedros [...]")
A ideia resulta de um convite de Teresa Belo. "Falou-me nisso há quatro ou cinco anos e eu aceitei logo", conta Pedro Amaral. "Um coro vai gravar previamente tudo o que é a enunciação narrativa, o que não são as palavras do par. Quando ouvirmos, será uma série de coros, com as vozes a circular, cantando as passagens em que Ruy Belo vai fazendo desfilar a paisagem, como uma espécie de ondulação de mar que atravessa a sala. E em palco estará uma pequena orquestra com os dois amantes e cinco ou seis instrumentos, flauta, clarinete, violino, violoncelo, piano e provavelmente percussão e viola." Pedro e Inês, os dois amantes, serão barítono e soprano, se forem cantores. "Ainda não sei se vão só dizer o poema ou se vão cantar. Falei com Luís Miguel Cintra e mantenho em aberto a hipótese de serem actores."
O início dos trabalhos está dependente de haver uma encomenda com data e local.
De volta a casa
E o espólio de Ruy Belo continua onde estava há 30 anos, na sala da grande mesa que noutra casa seria de jantar mas nesta casa era e continua a ser de trabalho, com vista para as copas das árvores, no Monte Abraão.
Os maços de suplementos literários, de quando os havia, todos amarelos e divididos em montinhos que o poeta atou com cordel e Teresa Belo voltou a atar com fita.
As pastas de couro, como antes as dos estudantes.
O velho rádio e os vinis.
As máquinas de escrever, para uma versão e outra, das muitas ainda corrigidas à mão por cima.
E as fotografias, as reproduções de pintura, os livros, milhares e milhares, a transbordarem desta sala para toda a casa.
Em cima da mesa, Teresa Belo mantém as pastas e os dossiers de cartão, com os manuscritos/dactiloscritos de cada livro, papéis soltos, bilhetes, anotações no que calhava e a correspondência, que não só tem as cartas recebidas como muitas das enviadas, em cópias ou originais posteriormente cedidos pelos destinatários.
15 cartas de Sena
A troca mais volumosa com outro escritor é a mantida com Jorge de Sena, 15 cartas e um postal. Teresa Belo e Mécia de Sena enviaram uma à outra os originais, mantendo cópias, e agora os dois espólios têm as cartas de ambos.
Os restantes correspondentes de Ruy Belo variam entre escritores (Pedro Tamen, Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Assis Pacheco, António Ramos Rosa, Gastão Cruz, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Liberto Cruz, Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Maria Teresa Horta, Nuno Bragança, Luís Amaro, Almeida Faria, Eduardo Guerra Carneiro, João Vário), editores (Arcádia, D. Quixote, Publicações Europa-América, Presença, Moraes), críticos (Lindley Cintra, Jacinto do Prado Coelho, Arnaldo Saraiva, Maria de Lurdes Belchior, Isabel da Nóbrega), amigos (como o brasileiro Sérgio Paxá ou a portuguesa Helena Abreu) e família (postais aos três filhos, Diogo, Duarte, Catarina, e uma vasta correspondência com Teresa Belo, desde 1961, incluindo os anos de Madrid).
É o retrato de um homem de palavras e, emocionadamente, de filmes, de arte, de música, das pessoas e dos lugares que fez seus.
Está lá o garoto que leu Paulo e Virgínia aos sete anos e quando chega a Paris vai procurar a rua do livro.
Está lá o poeta que acaba de publicar o seu primeiro livro, Aquele Grande Rio Eufrates e reage assim à crítica de um amigo:
"No limiar desta carta, devo-lhe garantir que apreciei devidamente a crítica mais severa que até agora me fizeram ao livro e que você, meu caro João Vário, continua a poder contar com toda a minha amizade, como antes, ou até mais do que antes. Se foi justo ou não, nem você nem eu o podemos saber. Foi-me decerto útil, muito útil, e era isto que eu esperava da sua amizade e do seu desassombro."
Pseudónimo de um poeta maior cabo-verdiano, João Vário (1937-2007) viveu em Coimbra, onde Ruy Belo estudou Direito.
E nesta mesma carta, em que ficamos a saber que Vário fora o seu mais severo crítico, Ruy Belo dispõe-se a impulsionar a obra de Vário:
"Já falei ao Alfredo Margarido no seu Exemplo Geral. [...] Penso que o que V. tem a fazer é mandar-me o original do livro. [...] julgo possível, de acordo com o que ele me disse, que o livro saísse na Novíssima Poesia lá para Outubro, começo do ano no mundo das letras."
As cartas confirmam uma natureza generosa, capaz do entusiasmo e da indignação dos que crêem que o homem pode ser melhor do que é.
As gralhas
Duas gralhas no poema Ce funeste langage, publicado a 27 de Fevereiro de 1964, no Diário de Notícias - onde estava "símil" o tipógrafo pôs "símile" e onde estava "lábil" pôs "hábil" -, levam Ruy Belo a escrever uma minuciosa carta ao jornal em que expõe as consequências da segunda troca e sobre a primeira defende que "mais do que corrigir a língua" o dicionário deve "acompanhá-la".
Valia a pena dar-se ao trabalho, neste caso como noutros, progressivamente mais letais, porque são as minúcias que fazem mal, como diz numa dura carta a Pedro Tamen.
E progressivamente, nestas cartas, Portugal vai ficando mais pequeno, até deixar de existir.
É o país onde como católico Ruy Belo pagou por não ser ortodoxo, antes e depois de deixar de ser católico foi vigiado e vetado pela PIDE, e a seguir ao 25 de Abril, doutorado em Direito, licenciado em Letras, poeta reconhecido, não conseguiu melhor emprego que dar aulas à noite numa escola técnica do Cacém.
No próprio dia da sua morte, 8 de Agosto, começou a redigir uma candidatura a assistente na Faculdade de Letras, que nunca o convidou para dar aulas.
Sobre o sistema e seus prémios, leia-se o P.S. referente a Neruda, numa das cartas aqui citadas. É depois de uma passagem em que Ruy Belo conta aquela vez em que quase ficou no mar, sem esquecer que a dentadura do banheiro lhe ia ficando na boca.
Ainda não foi dessa que morreu, mas teria ido como foi, um não-alinhado.
O espólio de Ruy Belo continua onde estava há 30 anos, na sala da grande mesa que noutra casa seria de jantar mas nesta casa era e continua a ser de trabalho. Os maços de suplementos literários, de quando os havia, todos amarelos e divididos em montinhos que o poeta atou com cordel e Teresa Belo voltou a atar com fita. As pastas de couro, como antes as dos estudantes. O velho rádio e os vinis. As máquinas de escrever, para uma versão e outra, das muitas ainda corrigidas à mão por cima

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