1925-2008 Robert Rauschenberg O artista que combinou todas as linguagens

Começou por estudar Farmácia, mas acabou por descobrir o desenho na Marinha. Já no curso de Artes, mudou o nome de Milton para Bob e nunca mais parou. John Cage e Jasper Johns deixaram de ser seus amigos quando disse que a companhia de Cunningham era a sua "maior tela". Por Óscar Faria

a Na semana passada, em consequência de uma pneumonia, Robert Rauschenberg foi internado no Lee Memorial Hospital, em Fort Myers, na Florida. Com o estado de saúde a deteriorar-se, o artista pediu para receber alta de forma a cumprir-se o seu desejo de morrer na sua casa, na Ilha Captiva, junto ao ambiente de trabalho dos últimos 40 anos. Morreu segunda-feira à noite, aos 82 anos, devido a uma falha cardíaca. Há muito que Rauschenberg tinha sérios problemas físicos - em 2002 sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), tendo ficado com metade do corpo paralisado. A sua recuperação foi lenta e ainda recentemente, aquando da inauguração da exposição Em Viagem 70 - 76, foi possível perceber a necessidade de uma cadeira de rodas para se deslocar através das salas do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto. Quem com ele convivia, dizia, contudo, que Rauschenberg nunca tinha perdido as suas faculdades quer mentais, quer artísticas, tendo mesmo produzido obra quase até ao fim da vida.Robert Rauschenberg - Milton Ernest Rauschenberg - nasceu a 22 de Outubro de 1925, em Port Arthur, no Texas, uma pequena cidade no Golfo do México, junto à fronteira com a Louisiana, cuja vida gira em torno de uma refinaria petrolífera e onde, segundo o artista, era "fácil de crescer sem nunca ter visto uma pintura". O apelido tem origem no avô, um médico de origem alemã, que se casou com uma Cherokee. O pai, Ernest, e a mãe, Dora, viviam com dificuldades económicas, dizendo-se que Rauschenberg terá sido mesmo influenciado pela forma como a mãe aproveitava os desperdícios - chegava a vestir-lhe camisas que fazia com diferentes tecidos. Os primeiros estudos do artista foram em farmacologia, na Universidade do Texas, em Austin, antes de entrar, em 1944, ao serviço da marinha norte-americana, um período em que descobre o talento para o desenho - depois de ter afirmado não querer matar ninguém, Rauschenberg foi colocado no Navy Hospital Corps como técnico neuropsiquiátrico (o seu contacto com marinheiros traumatizados levou-o a reforçar as suas convicções antimilitaristas).
Em 1947, o artista muda o seu nome de Milton para Bob, depois de uma noite passada a pensar nessa alteração num café de Kansas City, para onde tinha ido frequentar o instituto de arte local. No ano seguinte, Rauschenberg viaja para Paris, de modo a estudar na Académie Julien, lugar de encontro com Susan Weil, com quem irá casar em 1950 e de quem terá, em 1951, o seu único filho, Christopher - o casal divorcia-se no ano seguinte. É nos passeios pelas galerias e museus da capital francesa no final dos anos 1940 que o pintor irá descobrir as obras de Matisse e Picasso - por essa altura, contam os relatos, Rauschenberg trabalhava intensamente, tendo produzido pinturas com as próprias mãos, dispensando os pincéis. É ainda com Weil que regressa, em 1948, aos Estados Unidos, tendo ambos decidido inscrever-se no Black Mountain College (BMC), perto de Asheville, na Carolina do Norte. Ali lecciona um dos nomes míticos da Bauhaus de Dessau, o alemão Josef Albers, que será considerado por Rauschenberg como o seu mais importante professor.
O primeiro happening
No início dos anos 1950, o artista, enquanto estudante da Art Students League, em Nova Iorque, conhece Cy Twombly, que virá a ser um dos seus melhores amigos, tendo feito juntos uma longa e aventurosa viagem a Itália e ao norte de África. Em 1951, Rauschenberg realiza a sua primeira exposição individual na Betty Parsons Gallery, em Nova Iorque. Não vende nenhuma pintura, contudo é nessa ocasião que se cruza com Leo Castelli, mais tarde seu galerista, e John Cage, tendo-lhe oferecido obra Number 1. No ano seguinte, Edward Steichen irá comprar para o Museu de Arte Moderna (MoMA), duas fotografias realizadas no BMC, tenso sido estes os primeiros trabalhos adquiridos por um museu.
É ainda em 1952 que Rauschenberg irá participar, também no BMC, num dos eventos seminais da história da arte do século XX, a Theater Piece # 1 ou Evento sem Título, apontado como o primeiro happening e assim descrito no livro A Arte da Performance, de Roselee Goldberg (Orfeu Negro, Lisboa, 2007): "Os espectadores ocuparam os seus lugares na arena quadrada (...) cada qual segurando um copo branco previamente colocado em todas as poltronas. Quadros brancos de um estudante não residente, Robert Rauschenberg, pendiam do tecto. Sobre uma escada dobradiça, Cage, de casaco preto e gravata, leu um texto sobre "a relação entre a música e o budismo zen" e excertos de Mestre Eckhart. Depois, interpretou uma "composição com rádio", seguindo os "parênteses temporais" arranjados de antemão. Ao mesmo tempo, Rauschenberg passava velhos discos num gramofone movido à manivela e David Tudor tocava um "piano preparado". Em seguida, Tudor pegava em dois baldes e vertia água de um para o outro, enquanto Charles Olson e Mary Caroline Richards, na zona da plateia, liam poesia. [Merce] Cunningham e outros dançavam nos corredores, seguidos por um cão alvoroçado, Rauschenberg projectava "slides" abstractos (...)."
Este acontecimento terá ainda uma outra consequência, Rauschenberg será convidado por Cunningham para ser cenógrafo e figurinista da sua companhia de dança. No Outono de 1953, o artista irá criar outras obras que viriam a marcar a sua biografia. Automobile Tire Print, concebida em colaboração com Cage - trata-se da marca de um pneu de um Model A Ford, que pertencia ao compositor, inscrita sobre 20 folhas de papel, ao longo de quase sete metros - e Erased de Kooning Drawing, o apagamento literal de um desenho de Willem de Kooning, um dos nomes centrais do expressionismo abstracto, sendo este, porventura, o seu gesto mais iconoclasta: "A peça começou quando bati à sua porta e disse que queria apagar um dos seus desenhos. Ele disse-me para entrar. Olhou para uma série de portfólios de desenhos. O primeiro estava cheio de desenhos que ele não gostava. O segundo estava preenchido por desenhos que ele gostava mas que podiam ser facilmente apagados. Tinha um terceiro portfólio composto por mixed media - pastel e essa espécie de coisas. Tive um desses. Disse-me que não me queria facilitar o trabalho - e não facilitou! Demorei quatro semanas a apagar o desenho. Usei 15 tipos diferentes de borrachas - e para além disto, há um desenho do outro lado!"
1954 é o ano do encontro com Jasper Johns, que será seu companheiro durante uma década, anos determinantes no trabalho dos dois artistas, responsáveis pela criação de um novo paradigma da arte norte-americana, depois do expressionsimo abstracto, antes da arte pop. Nesse ano Rauschenberg cunha a palavra combine, que passa a descrever uma série de obras nas quais se podem detectar, em simultâneo, características próprias da pintura e da escultura. É feita a distinção entre combine paintings, termo respeitante às peças de parede, e combines, nome usado para definir os outros objectos. Nestas criações, o artista recupera linguagens das primeiras vanguardas europeias, nomeadamente a colagem ou o monocromo - as red paintings, expostas na Egan Gallery, em Nova Iorque, em Dezembro de 1954, ou Minutiae, do mesmo ano, deixada de fora da exposição por estar a ser usada como adereço num produção da companhia de Merce Cunningham, são as obras apontadas como fundadoras dos combines.
A maior tela
Uma outra história: em 1955, Rauschenberg vivia num loft da Fulton Street, por 15 dólares ao mês. Sem dinheiro para comprar tela, o artista decidiu pegar na sua cama e no seu travesseiro, pintando-os por cima de uma forma despreocupada e criando assim Bed. Leo Castelli comprou a obra por 1200 dólares, em 1958, tendo sido esta peça a única vendida na primeira exposição de Rauschenberg na sua galeria, na qual foram mostrados 20 combines. Mais de 20 anos depois (1988), Castelli doou Bed, à época já a valer cerca de 10 milhões de dólares, ao MoMA, um gesto de gratidão para com o museu e o director fundador, Alfred Barr. "Estou muito orgulhoso pelo Leo o ter doado ao museu", disse Bob. "Não gosto que as obras-primas tenham one-night stands em casa de colecionadores, entre leilões."
Passaram-se cerca de dez anos, o artista tinha já produzido um conjunto significativo e variado de trabalhos: as pinturas brancas e as pinturas pretas do início dos anos 1950, os combines - entre os quais Rebus (1955), Bed (1955), Odalisk (1955-58), Factum I e Factum II (1957) e Monogram (1955-59) -, os 34 desenhos inspirados no Inferno, de Dante (1959-60) e Barge (1962-63), uma pintura monumental realizada com recurso a óleo e a técnicas serigráficas. Estamos em 1964: no dia em que venceu o Grande Prémio de Pintura da Bienal de Veneza, Robert Rauschenberg telefonou a um amigo - encontrava-se em digressão com a companhia de dança de Merce Cunningham -, pedindo-lhe para destruir todos os seus projectos incompletos, nomeadamente serigrafias, cortando dessa forma com o passado e com a possibilidade de repetir as fórmulas do sucesso. Nessa ocasião, o artista irá também romper a amizade que o ligava a Cage e Johns, devido a uma frase por si proferida, na qual afirmava ser a companhia de Cunningham a sua "maior tela" (trabalhou ainda com outros coreógrafos importantes, como Trisha Brown e Steve Paxton).
Rauschenberg decide retirar-se para a Ilha Captiva, no sudoeste da Florida, em 1970. A mudança deu-se, na sequência de um estado depressivo, a conselho de um conhecido astrólogo, Zoltan Mason: "Fui ter com ele quando toda a gente que conhecia estava a separar-se. Estava tudo a desabar. Havia tal abundância de más notícias que comecei eventualmente a pensar se não era o meu espírito, ou falta de espírito, que era responsável pela situação", recorda pintor numa entrevista com Barbara Rose. E acrescenta: "A minha vida estava em mudança, portanto encontrava-me livre."
Daí para cá a biografia do artista inclui inúmeras exposições, colaborações - nomeadamente com coreógrafos -, performances, tendo mesmo criado uma fundação sem fins lucrativos dedicada a diferentes áreas do seu interesse, como "a investigação médica [nomadamente no campo da sida], a educação, o meio ambiente, os sem-abrigo, a fome no mundo e a arte." Um dia, Rauschenberg afirmou: "A pintura relaciona-se quer com a arte, quer com a vida. Nenhuma pode ser feita. (Tento agir no intervalo entre as duas.)"
Monogram, realizado entre 1955-59, e Bed, de 1955 (em cima à esq.)

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