Os silêncios de Thelonious ainda soam tão bem...

Na Casa da Música, no Porto, um palco com palanques para a bateria mais duas frentes de metais. Um piano ao meio. Um ecrã de projecções no alto. Aguardava-se um concerto de jazz. E o ecrã? Um concerto de jazz multimédia, coisa rara numa música que faz gala do classicismo. A perplexidade sucumbiu aos primeiros instantes: o ecrã era uma ponte que atravessava um espaço temporal de quase meio século para trazer ao presente a gravação histórica de Thelonious Monk no Town Hall de Nova Iorque, a 28 de Fevereiro de 1959, e a incorporar na homenagem que um dos seus mais devotos discípulos lhe ia dedicar nos 100 minutos que se seguiram. O palco, o ecrã, a novidade da proposta e a evocação da música de Monk só poderiam aproximar-se do desastre se os autores da homenagem fossem desastrados. Não eram, já se sabia. Jason Moran é, e confirmou-o, talvez o mais interessante pianista da actualidade. E o septeto que o acompanhou (Jason Yarde, saxofone alto, Byron Wallen trompete, Andy Grappy, tuba, Fayez Virjii, trombone, Denys Baptiste, saxofone tenor, Tarus Mateen, contrabaixo e Nasheet Waits, bateria) revelou-se uma das mais poderosas máquinas de produzir jazz que se viram nos últimos tempos.Aviso à navegação: quem gostasse de Monk, quem tivesse o Thelonious Monk Orchestra at the Town Hall entre o lote dos discos que levaria consigo para o desterro numa ilha deserta, apenas poderia gostar muito ou adorar o concerto. O alinhamento dos temas do disco original foi respeitado. A genialidade das composições, os arranjos de Hal Overton, o fascinante pianismo de Monk, com os seus silêncios, os seus ataques brutais, as suas hesitações estiveram lá. Mas o concerto esteve longe de ser um exercício académico, meramente imitativo da verdade da pauta. Nos momentos de improviso, os tecidos de Monk foram muitas vezes envolvidos com as cores e as formas que o jazz foi inventando ao longo das últimas décadas. O concerto foi grande por isso: porque a música de Monk é grande, mas também porque os oito músicos em palco (com destaque óbvio para Moran) souberam recorrer ao seu espírito para o reinventar.
Sendo uma homenagem ao músico que lhe abriu as portas do jazz quando tinha apenas 13 anos (In my Mind, o nome dado ao concerto, é revelador), Jason Moran recorreu a vários artifícios para transplantar o passado de Monk até ao presente. O concerto abre com o pianista a solar sobre um sample de Thelonious, o tema de abertura do concerto do Town Hall, antes que a banda substituísse a banda sonora original. Por várias vezes são reproduzidos diálogos da época entre Monk e o que se supõe ser o autor dos arranjos em 1959. Mas houve também momentos de flashback, como quando Moran explica o momento em que o jazz se lhe revelou, pela audição de Round About Midnight, quando tinha 13 anos. Aliás, num momento em que solou para criar um pano de fundo a essas memórias, fez uma magistral combinação entre os temas de Monk´s Mood e Round Midnight.
Após uma fabulosa interpretação de Little Rootie Tootie, o concerto acabaria como acaba a gravação original, com Crepuscle with Nellie. Nesse momento, a plateia que ocupou bastante mais de metade da sala Guilhermina Suggia estava já rendida ao poder e à sedução de Monk, de Moran e dos seus pares. A banda atravessaria a sala entre os presentes sempre a tocar e o epílogo do concerto deu-se já nas zonas de acesso da Casa da Música, com os presentes a rodearem os músicos. Nos rostos, sinais de regozijo. A homenagem tinha cumprido o seu lado ritual. A banda de Moran esteve num nível altíssimo. E os espectadores puderam confirmar uma vez mais que a música de Thelonious Monk é o que sempre foi: um terreno que instiga a liberdade criadora dos que se lhe dedicam.

Manuel Carvalho

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