Vila Faia Godunha e Mariette já não são o que eram

Em 1982, um grupo de actores e produtores teimosos mostrou que Portugal também sabia fazer telenovelas. O camionista Godunha e a prostituta Mariette conquistaram o país em Vila Faia. O remake estreia hoje

a Avisos não faltaram. Quando a noite de estreia chegou, a 10 de Maio de 1982, Francisco Nicholson - o autor do argumento de Vila Faia, a primeira telenovela portuguesa - e o resto da equipa estavam preparados para o pior: uma gargalhada geral, um país inteiro a gozar com os portugueses que tinham tido o desplante de fazer uma telenovela como - era nisso que (quase) todos acreditavam na altura - só os brasileiros conseguiam. "Houve muitos amigos a aconselharem-me a não embarcar nisso", recorda Nicholson. "Achavam que nos íamos cobrir de ridículo. No dia da estreia tenho a sensação de que as pessoas foram ver para se rir. Pensei que talvez não fosse a tal gargalhada geral, que se ficassem por um sorriso amargo". Nada disso. A história da família Marques Vila, produtores do vinho Vila Faia, e o amor entre o camionista João Godunha (Nicolau Breyner) e a prostituta Mariette (Margarida Carpinteiro) na tasca da Ti Ermelinda (Luisa Barbosa) conquistou o país. "Foi tiro e queda, amor à primeira vista. As pessoas não estavam à espera".
A equipa, que durante meses trabalhara em condições precárias e perante o "cepticismo geral", soltou um enorme suspiro de alívio. Não seria tão cedo que as novelas portuguesas destronariam as brasileiras - afinal Gabriela hipnotizara o país em 1977, apenas cinco anos antes de Vila Faia. Mas, garante Nicholson, não era isso que pretendiam. "Pensar que iríamos fazer frente ao Brasil, nem pouco mais ou menos. Só queríamos demonstrar a nossa capacidade e a existência de gente em Portugal para fazer uma telenovela".
Mais de 25 anos depois, Vila Faia regressa num remake para os 50 anos da RTP. A história e as personagens são as mesmas, mas tudo o resto é bastante diferente. Nem podia ser de outra maneira. Vinte e seis anos depois o país é muito diferente. Quem se lembra já que, logo na primeira cena, Ruy de Carvalho, o pai Marques Vila, diz numa reunião de trabalho: "Agora que vem aí a Europa...".
E não são só as mobílias, os telefones, as roupas e os penteados com permanentes estilo anos 80. "Do telemóvel à queda do Muro de Berlim aconteceu tudo. A indústria do vinho, por exemplo, teve um boom extraordinário", explica Joana Jorge da empresa Script Makers, os responsáveis pela adaptação da história à actualidade.
Na telenovela de 1982, Rosa Lobato Faria era a mãe dos Marques Vila, sempre em casa, sentada no sofá a fazer tricot e a conversar com a sogra, a matriarca da família, representada por Mariana Rey Monteiro. A grande preocupação eram os dois filhos problemáticos, Joana, a desajustada (Paula Street), e Pedro, o rebelde (Nuno Homem de Sá). "Na Vila Faia original havia, na classe média alta, duas mulheres a trabalhar", diz Joana Jorge. "Hoje há mais mulheres licenciadas do que homens e isso tem que se reflectir necessariamente na novela".
Cenas de sexo
E havia, claro, Mariette. "No remake a prostituição é abordada de forma diferente. Na original era um tema que rasgava em relação à época. Hoje já não é um assunto tabu, por isso é abordada de uma forma muito mais natural e explícita, sem ser chocante", afirma a co-autora da adaptação. Margarida Carpinteiro, a prostituta com um filho para criar, vai assim transformar-se, aos olhos dos portugueses, em Inês Castel-Branco - outro género, sem dúvida, pelo que se percebe das cenas mostradas na apresentação da nova novela à imprensa, com muito mais corpo à vista, ligas pretas, e cenas ousadas.
"Houve uma evolução na profissão", explica Inês Castel-Branco. "Já não existem só os bares de alterne e as prostitutas que ficavam nas tascas à espera de clientes. A minha Mariette já é uma prostituta de anúncios de jornal". E, se é verdade que "hoje o sexo está mais banalizado", a actriz apressa-se a baixar eventuais expectativas: "Na outra novela não havia cenas de sexo. Aqui há algumas, mas sobretudo no primeiro episódio".
Apesar disso, há mais em comum entre as duas Mariettes do que pode parecer. "Tem uma vida muito difícil, uma profissão mal vista, e encontra o amor apesar de não acreditar nele". E o amor surge sob a forma de João Godunha, o impulsivo e generoso motorista dos Marques Vila. Mais uma vez, vinte e seis anos fazem grande diferença - de Nicolau Breyner para Albano Jerónimo, Godunha perde, pelo menos, a barriguinha de camionista.
Visto pelos olhos do professor universitário escocês Hugh O"Donnell, que tem estudado o fenómeno das telenovelas e soap operas na Europa, "nos anos 90, o Portugal das novelas da RTP era um país dominado por pessoas mais velhas, e embora houvesse alguns jovens, e ocasionalmente até crianças, as preocupações destes eram menos importantes do que as dos mais velhos, que dominavam os argumentos".
Sociedade conservadora
O"Donnell - que em 1999 lançou Good Times, Bad Times, uma análise das novelas na Europa, com o título da novela alemã que inicialmente o fez interessar pelo tema - percebeu na altura que o caso português tinha características particulares. "Enquanto os outros países estavam a descobrir as soap opera com as séries americanas Dallas e Dinastia, os portugueses já viam telenovelas há muito mais tempo do que o resto da Europa e estavam familiarizados com o formato brasileiro".
Concluiu depois que as produções portuguesas eram "bastante mais conservadoras, mais relutantes em levantar questões sociais, do que as brasileiras, que falavam de tudo". Actualmente, as "novas novelas da TVI [curiosamente, Nicholson é agora actor numa delas, Fascínios] dão uma imagem de um Portugal mais fresco, uma sociedade mais urbanizada, moderna e até na moda".
"Nós não éramos conservadores", responde Nicholson. "A nossa sociedade é que era tremendamente conservadora". A novela seguinte, Origens, chocou o país, recorda: "Ao fim de 15 dias queriam tirá-la do ar, porque tratava o problema da toxicodependência. Fizeram-se abaixo-assinados de protesto e tudo".
Mas a prostituição na Vila Faia não foi polémica. "Era uma prostituta pobrezinha, que tinha que sustentar o filho, as pessoas percebiam que era uma chaga social". Vinte e seis anos depois, o país já aguenta ver a Mariette semi-nua e de ligas pretas. Portugal mudou.
Ifigénia hoje (Simone de Oliveira) e ontem (Mariana Rey Monteiro)
Gonçalo hoje (Virgílio Castelo) e ontem (Ruy de Carvalho)
Madalena hoje (Sofia Sá da Bandeira) e ontem (Ana Zanatti)
Mariana hoje (Mariana Norton) e ontem (Luisa Freitas)
Pedro hoje (Ruben Gomes) e ontem (Nuno Homem de Sá)
João Godunha hoje (Albano Jerónimo) e ontem (Nicolau Breyner)
Mariette hoje (Inês Castel-Branco) e ontem (Margarida Carpinteiro)

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