Visita guiada ao mundo fan tástico da Aula da Esfera

Portugal estava na primeira linha do pensamento científico desde os finais do século XVI até ao século XVIII. Ao contrário do que se pensava. A Biblioteca Nacional prova-o com base numa colecção de manuscritos da Aula da Esfera, o curso de matemática leccionado pelos jesuítas do Colégio de Santo Antão. Henrique Leitão, comissário da mostra, fez a visita guiada para o P2

a "É tudo fantástico", diz Henrique Leitão, o comissário da exposição Sphaera Mundi - a ciência na Aula da Esfera. Ainda ecoavam os berbequins, havia cheiro a tinta e muita confusão. Faltavam dois dias para que pudesse ser visto o conjunto de cerca de 60 manuscritos, nunca antes mostrados, no seu conjunto, ao público. São tesouros desenterrados do acervo da Biblioteca Nacional, que Henrique Leitão e a equipa do Centro de História da Ciência da Biblioteca Nacional anda há três anos a investigar. Nunca tinham sido catalogados com este pormenor."Chegou o Lembo", grita Lígia Martins, responsável pela ala de reservados da BN, um dos elementos da equipa responsável por trazer à luz do dia os manuscritos. Chega um courrier - assim se chamam os responsáveis por transportar obras valiosas entre instituições - com uma das obras mais aguardadas num saco que vem emprestada da Torre do Tombo. O manuscrito é assinado por Giovanni Paolo Lembo, amigo pessoal de Galileu. Ficará exposto na primeira vitrina, à esquerda de quem entra. Mas só no dia da exposição. Vai ter de esperar no depósito da BN. "É o primeiro manuscrito a falar de telescópios e de observação com telescópios. Já era usado nas aulas. E tem provavelmente as primeiras instruções de construção de telescópios do mundo. Prova o que era dado em Santo Antão. Nunca foi exposto", conta Henrique Leitão.
"Lembo tomou contacto, em 1610, com as primeiras ideias divulgadas por Galileu onde eram desmontadas as teorias de Ptolomeu, do geocentrismo e se questionavam algumas ideias sobre o heliocentrismo de Copérnico. Em 1615 já os alunos de Santo Antão tinham contacto com as teorias de Galileu e as discutiam, ao contrário do que a história da ciência do século XX acreditava", como explica Luís Miguel Carolino, especialista em história da ciência, investigador do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa.
Henrique Leitão corrobora a ideia: "É uma das obras mais importantes da história do pensamento científico em Portugal". E aponta com o dedo uma cópia de uma das ilustrações que o manuscrito contém: "Esta gravura da observação das fases de Vénus, que provava que o planeta andava à volta do Sol, desmanchava todo o conhecimento de Ptolomeu. É incrível que isto já fosse ensinado em Portugal em 1615."
Dividida entre astronomia, óptica e mecânica, náutica, engenharia militar e geometria e trigonometria, a exposição da biblioteca nacional mostra como os alunos da Aula da Esfera, quase todos cosmógrafos-mor e engenheiros-mor do reino, aplicavam os conhecimentos de ponta nas mais variadas formas. Dali saiu Luís Serrão Pimentel, o mais importante engenheiro militar do século XVII. A forma como aplicou a matemática ao desenho das praças fortes na guerra da sucessão está patente numa das gravuras mais vistosas da sala.
Chega outro courrier, entretanto com outra das peças emprestadas: o único instrumento científico que será exposto ao lado dos manuscritos. Vem do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa. Samuel Gessner, suíço, investigador do Centro de História da Ciência da Universidade de Lisboa, pega num par de luvas brancas para poder pegar na espécie de transferidor dourado que conhece bem.
Uma peça entre quatro
Especialista em instrumentos científicos, Samuel é o investigador que mais estudou a peça. Sabe tudo sobre a sua história: "É uma máquina de calcular", diz sobre a peça que tem o nome "gramelogia". O nome original é "circle of proportion". "Serve para multiplicar e dividir números grandes e fazer cálculos trigonométricos. Do outro lado é um relógio de Sol", diz, virando com muito jeito o círculo em liga de cobre. "Tenho uma lista de quatro instrumentos destes no mundo. Não penso que existam mais."
Jorge Couto, director da Biblioteca Nacional, explica que a exposição está integrada num trabalho mais amplo que a BN tem vindo a desenvolver na secção de reservados. "Integra-se num amplo projecto de inventariação dos manuscritos científicos da colecção da BN. Tem permitido descobrir manuscritos valiosos que estavam apenas referenciados em fichas técnicas mas que nunca tinham sido analisados do ponto de vista do conteúdo", diz, adiantando que há outras áreas do conhecimento onde a instituição está a investir no sentido da catalogação ao pormenor do espólio.
Para Jorge Couto, o facto de só agora se conseguir apreciar o verdadeiro valor destes manuscritos não é da exclusiva responsabilidade da BN: "Tudo depende do interesse dos investigadores. A BN tem a função de adquirir e preservar a obra. O seu estudo tem de ser feito por investigadores e estamos abertos para os receber." E acrescenta que estes são trabalhos morosos, que demoram anos, e que são silenciosos até que surge a hipótese de uma exposição e um catálogo. Hipótese essa só possível, muitas vezes, graças ao mecenato. Desta vez foi a REN, Rede Eléctrica Nacional, que Jorge Couto identifica como " um dos grandes mecenas dos dois maiores arquivos nacionais" - a BN e a Torre do Tombo - e que está agora também a tornar possível a digitalização do arquivo da inquisição.
Ao serviço da ciência
Ana Eiró, directora do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, que comissariou a exposição alusiva aos cem anos da teoria da relatividade de Einstein, realizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, realça o interesse destas mostras para a divulgação do conhecimento científico: "É muito interessante o esforço que tem sido feito para chamar a atenção para a história da ciência e a BN tem feito um bom trabalho na divulgação do seu património."
Ana Eiró, que elogia a selecção das obras da exposição da BN, lembra contudo que o contacto com estas obras raras é algo muito emocionante para um investigador, mas que, para despertar a atenção do público em geral, tem de ser tudo muito bem explicado: "Não é fácil atrair as pessoas. Tem de haver alguém a contar aquela história. O ideal é ter o privilégio de fazer uma visita guiada ao Colégio de Santo Antão".
O ideal, para a física de formação, era proporcionar mais momentos destes ao público, mas o investimento que estas mostras exigem é muito grande: "Tem de haver alguém que esteja treinado, que conheça o espólio e saiba encontrar um bom fio condutor. Neste aspecto os investigadores do Centro de História da Ciência da Universidade de Lisboa estão a prestar um serviço público de extrema importância e a contribuir para a divulgação da história da ciência."
Henrique Leitão reconhece que a catalogação pormenorizada de cada obra fará as delícias dos investigadores nacionais e internacionais que se dedicam à história da ciência. "Não há uma instituição que tenha dado aulas de matemática durante tanto tempo, de 1590 a 1759 e com tantos professores estrangeiros. Tinha 2500 alunos. A circulação de informação é enorme", diz o especialista que sabe que os maiores investigadores desta matéria já estudaram a Aula da Esfera.
Do Colégio de Santo Antão, quase todo destruído pelo terramoto de 1755, resta hoje o Salão Nobre do Hospital de São José, erguido no mesmo local, e o painel de azulejo evocativo da Aula da Esfera. "Os jesuítas acabariam por ser expulsos em 1759. Nada se sabe sobre o que aconteceu então. O arquivo do colégio desapareceu. Já encontrei manuscritos do colégio na British Library."

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"São notas de aulas do curso de Giovanni Paolo Lembo, as instruções para construir telescópios. Um documento notável, que prova que em Portugal havia telescópios desde logo, mas que os alunos também os construíam. Estas regras são muito importantes. Todo o manuscrito de Lembo é valiosíssimo porque mostra que as descobertas de Galileu foram ensinadas cá muito cedo. Em 1615 em Lisboa já toda a gente estava a par das teorias de Galileu."
"São as fases de Vénus. As fases de Vénus são a mais importante observação de Galileu porque mostram que o sistema de Ptolomeu estava errado. Se Vénus tem fases é porque anda à volta do Sol. Imediatamente rejeitam o sistema de Ptolomeu e discutem o sistema de Copérnico e Tycho Brahe. Acabariam por aceitar este último. O Colégio de Santo Antão é a escola mais internacional de ciência em Portugal. Um terço dos professores são estrangeiros."
"São as aulas de um professor, chamado Stafford, inglês. Um manuscrito notável onde ele dá um curso muito completo de matemática com uma parte muito importante de fortificação e arte militar. Aqui estão as regras geométricas para construir uma praça forte. A partir de 1640, no Colégio de Santo Antão, há um incremento muito grande de aulas de arquitectura militar."
"É um pantómetra, uma regra de cálculo muito avançada, para cálculos complicados, ensinada na aula de um professor inglês que dava cá aulas e que era usada pelos alunos ."
"Instrumento no livro, já impresso, de um professor, padre jesuíta, chamado Valentim Estancel. São relógios de Sol, muito sofisticados, mas com aplicação à náutica."

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