António Costa e o feitiço que se virou contra o feiticeiro

O autarca está a sofrer na pele as consequências da legislação restritiva que, como ministro, impôs às autarquias

Escreveu-se neste espaço, a 3 de Dezembro de 2007 e a propósito do pedido de empréstimo pedido pela câmara da capital, que não estava claro "se o artigo da lei invocado pelo presidente da câmara (o 40.º) é o correcto, ou se o empréstimo se devia enquadrar noutro artigo (o 41.º), que é mais exigente relativamente às condições do empréstimo e implica a intervenção do Governo". Acrescentava-se adiante que isso poderia, por si só, levar ao chumbo do empréstimo pelo Tribunal de Contas. Ora foi precisamente isso que sucedeu.António Costa, autor da lei de que ele próprio é agora vítima, queixa-se de que não gosta de ver a "lei maltratada", ao referir-se ao acórdão do Tribunal de Contas. Mas quem ler com atenção esse acórdão verificará é que o António Costa, quando era ministro, fez uma lei imprecisa, vaga nalguns pontos, e muito rigorosa para com os municípios. Agora está a pagar por isso, fazendo uma triste figura e prejudicando todos os munícipes de Lisboa.
A primeira questão que se colocava era a de saber se o município deveria ou não ter recorrido ao artigo 41.º, artigo esse que colocaria a gestão da Câmara de Lisboa virtualmente nas mãos do Governo e a impediria de fazer mais investimentos do que os necessários para substituir a maquinaria mais básica. Novas obras nem pensar. É óbvio que esse colete de forças não interessa a ninguém na câmara, mas aquilo que se depreende do acórdão do tribunal é que o défice da edilidade não é "conjuntural" (artigo 40.º), antes "estrutural" (artigo 41.º). Porquê? Porque o Tribunal de Contas chegou à conclusão de que as dívidas do munícipio a fornecedores ascendem a mais de 451 milhões de euros, bem mais do que os 50 por cento previstos na lei quando as avaliamos por comparação com as receitas municipais, que em 2006 foram de 570 milhões de euros.
Cabe aqui notar que, para tentar fazer passar o empréstimo, a câmara tentou diminuir de forma artificial e não prevista na lei o montante da dívida: negociou com dois fornecedores da autarquia, a Parque Expo e a Simtejo (uma empresa de tratamento de esgotos) a cessão dos créditos a duas entidades bancárias, transformando o que eram dívidas a fornecedores em dívidas financeiras, um artifício que os juízes não aceitaram.

Neste quadro, o tribunal lembrou que caberia à assembleia municipal, sob proposta da câmara, ou ao Governo, declarar a situação de "desequilíbrio financeiro estrutural". Surpreende-se mesmo por o Governo não o ter feito - aliás, seria conveniente que o Governo esclarecesse por que não o fez e se existem mais municípios em idênticas condições a que se está a fechar os olhos.Não podendo analisar o pedido de empréstimo ao abrigo desse famoso artigo 41.º, uma vez que o Tribunal de Contas não tem competência para declarar o desequilíbrio como sendo "estrutural", os juízes trataram então de verificar se este cumpria os requisitos impostos pelo artigo 40.º. Que, no essencial, são dois: o nível de endividamento da autarquia não aumentar (o que aconteceria se a edilidade ficasse como uma espécie de "bolsa" para outras dívidas, como pretendia inicialmente António Costa) e existir "um plano de saneamento financeiro para o período a que respeita o empréstimo". No caso do empréstimo negociado pela câmara, 12 anos.
Tendo de dar o visto prévio ao empréstimo, o tribunal entendeu que deveria avaliar a credibilidade desse plano. E disse porquê: "Um orçamento e um plano, para serem credíveis, devem emergir de objectivos concretizáveis, quantificáveis e controláveis e não de meros anseios que "só por milagre" podem ser atingidos". Ora, analisados os documentos que lhe foram apresentados, o organismo que tem por missão fiscalizar e certificar as contas públicas emite um juízo demolidor: "o Plano de Saneamento Financeiro apresentado peca por defeito, sendo mais aproximado de um plano de intenções do que, verdadeiramente, de um documento financeiro perspectivado para mostrar, com segurança e confiança, os objectivos propostos". Ou seja, o plano financeiro de António Costa não cumpre os requisitos que a lei de António Costa exigia que fossem cumpridos.

O presidente da câmara diz agora que "é discutível que o Tribunal de Contas tenha competência para julgar o mérito do plano de saneamento financeiro e não só para julgar o do empréstimo". Sendo assim, quem tem? O interessado, isto é, a câmara? Ou o tribunal a que a Constituição deu essa competência? E não pode o tribunal avaliar um plano a 12 anos, por a câmara se mostrar incapaz de o elaborar? Então porque diz a lei feita sob o mandato de Costa que as autarquias têm de apresentar um "plano de saneamento financeiro para o período a que respeita o empréstimo", neste caso os tais 12 anos? Talvez porque na altura o autarca era ministro e, às vezes, o feitiço se volta contra o feiticeiro.

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