Torne-se perito

"Sou um Indiana Jones da ópera lírica"

Depois de 15 anos a coleccionar objectos e documentos relativos à vida da mítica cantora Maria Malibran, Cecilia Bartoli dedicou-lhe um disco, uma digressão mundial e uma exposição que assinala os 200 anos do seu nascimento. Em Lisboa para um concerto na Gulbenkian, a grande meio-soprano italiana falou ao P2 desta extraordinária "diva" dos alvores do Romantismo

a "Estou sempre à procura da arca perdida". É assim que Cecilia Bartoli, que se apresentou ontem na Gulbenkian com a Orquestra de Câmara de Basileia, define a sua paixão pela descoberta de repertório, estilos de interpretação ou personalidades do passado que o tempo deixou na sombra do esquecimento mas que, por vezes, encerram verdadeiros tesouros. Uma componente indissociável de um percurso brilhante e singular que fez dela uma das cantoras mais mediáticas do nosso tempo. A meio-soprano italiana possui uma notoriedade semelhante às mais famosas "divas" da ópera ou da pop, mas não se encaixa no perfil do star system mais convencional. Tem um temperamento afável e acessível, desconhecem-se-lhe "caprichos de diva" e distingue-se por apresentar projectos interpretativos consistentes, apoiados por uma sólida base musicológica e intelectual. Uma voz fora do comum, a técnica estonteante e a forte carga emocional das suas interpretações, bem como um marketing fortíssimo, são alguns dos factores responsáveis pelo grande sucesso de Cecilia Bartoli junto do grande público, que de outra forma provavelmente negligenciaria repertórios como a ópera séria de Gluck, a música de Salieri ou as raridades de um disco como Maria, onde se incluem peças de autores como Pacini, Hummel, Persiani, Rossi ou Manuel Garcia.
Homenagem à meio-soprano Maria Malibran (1808-1836), uma das grandes lendas da primeira metade do século XIX devido à sua voz extraordinária e à sua vida conturbada que acabou tragicamente aos 28 anos, o último disco de Cecilia Bartoli insere-se num projecto mais amplo de comemoração dos 200 anos do nascimento da cantora, contemplando uma digressão internacional e uma exposição que tem viajado num grande camião por vários países da Europa, mas que não foi apresentada em Lisboa por falta de patrocínios.
No decurso da pesquisa que fez em torno da figura de Maria Malibran quais foram as maiores surpresas?
As maiores surpresas são técnicas. A Malibran tinha uma voz e uma técnica incríveis. Era um meio-soprano quase contralto que começou como Rosina no Barbeiro de Sevilha, mas cantou também Arsace [da Semiramide, de Rossini], Tancredi ou Romeo, papéis que hoje são feitos por meio-sopranos quase contraltos. Foi fascinante perceber que ela começou com estas personagens mas não ficou por ali. Passou depois para a Sonnambula, a Norma, Maria Stuarda, ou seja, para papéis que nos habituámos a escutar sempre com sopranos. Todavia, a primeira Sonnambula foi Giuditta Pasta, que tinha uma voz quase de meio-soprano. A tradição é uma coisa e o que se fazia na época era outra. A Malibran foi também um exemplo pela sua musicalidade e por ser uma mulher muito moderna para a época. Falava várias línguas, viajava, era compositora e uma actriz fabulosa. Quando se fala de divas, no sentido moderno, ela é a primeira figura que emerge, o primeiro ícone romântico. Não só cantava magnificamente como esprimia as emoções em palco. Revolucionou o teatro um pouco como fez mais adiante a Callas. A própria Callas inspirou-se muito na Malibran. Também ela compreendeu a importância do teatro, a fusão entre música e libreto: a música ao serviço da poesia e a poesia ao serviço da música.
Mas antes, no barroco, embora as grandes estrelas fossem os castrati havia já a figura da prima donna...
A Malibran cantou com um dos últimos grandes castrati, Giovanni Velluti, mas na altura ela já estava velho e a moda dos castrati estava a declinar. Mas acho que ela também se sentia fascinada pela vocalidade dos castrati e estes foram uma influência no desenvolvimento da sua técnica vocal. Tendo um timbre quase de contralto, devia ser uma coisa fascinante porque até certo ponto haveria algumas semelhanças com os castrati. Mas depois ela desenvolveu uma técnica que lhe permita chegar ao registo de soprano. Há também a questão da improvisação. Ela improvisava caballette cada noite, era puro jazz! [risos] Também a tradição de improvisar vinha de trás e era praticada pelos melhores castrati.
Quando se abandonou esse hábito da improvisação?
Para improvisar é preciso ter um enorme domínio técnico do instrumento e saber jogar com a voz.
A formação musical também deixou de ser orientada nessa direcção...
Tornou-se mais especializada mas também muito mais limitativa. A Malibran tocava três instrumentos (harpa, guitarra e piano) e compunha. A sua formação musical era muito alta. Não só a dela, o mesmo sucedia com a sua irmã, Pauline Viardot. Nos jornais vienenses do século XIX publicavam-se partituras, melodias dos compositores da época, junto com as novidades da moda, o que prova que a formação musical era bastante generalizada.
Quando se iniciou o seu fascínio por Maria Malibran?
Logo no início da minha carreira. Estreei-me no papel de Rosina aos 19 anos. A Malibram tinha 17 quando o estreou em Londres. Sempre me fascinou a família Garcia. O pai, Manuel Garcia [tenor que se estreou o papel do Conde de Almaviva no Barbeiro de Sevilha], as duas filhas Maria Malibran e Pauline Viardot [cantora e compositora] e o irmão [Manuel] que além de cantor inventou o langoscópio [instrumento usado no exame à laringe e às cordas vocais]. Depois ela morreu muito jovem, aos 28 anos, o que reforçou o mito. Era uma deusa da música, uma mulher moderna e corajosa, a favor da revolução. Não se pode ser cantor e não conhecer o que escreveram sobre Maria Malibran. Outras grandes cantoras sentiram este fascínio, por exemplo a Callas, Joan Sutherland, também elas tinham cartas da Malibran. Soube recentemente que também a Schwartkopf tinha uma carta ou duas da Malibran.
Quando interpreta o repertório da Malibran adopta uma técnica diferente da que usa no repertório barroco?
Estudei com a minha mãe e ela deu-me desde muito jovem uma bagagem técnica de um certo peso. Iniciei-me com papéis rossinianos mas com instrumentos modernos. Depois voltei-me para o repertório clássico, Mozart, Haydn, com Harnoncourt e com instrumntos de época, e para para o barroco com Vivaldi ou Scarlatti. Agora trata-se de um retorno, mas que é muito mais interessante, porque é um retorno ao bel canto com a experiência do clássico e do barroco. Bellini e Rossini vêm depois de Mozart. Para cantar bem estes compositores é preciso conhecer bem os anteriores, estudar os vários estilos. Volto agora com uma bagagem musical muito maior do que há 20 anos.
Um dos aspectos que distingue as interpretações mais tradicionais de uma abordagem historicamente informada é o uso do vibrato. Qual é a sua postura em relação a este recurso?
Houve um uso e um abuso do vibrato. A voz tem por si um vibrato natural, que permite alcançar a afinação. Mas isso é uma coisa, outra é aquele vibrato exagerado que sentimos por exemplo nos violinos nas interpretações românticas. Pode usar-se o vibrato num momento preciso emocional, porque a música pede. Mas há muito momentos onde não pede e se abusa dele. Isto acontece também porque para uma grande parte dos instrumentistas o vibrato é usado para resolver um problema técnico. Quando não estão seguros começam a usá-lo até chegar à afinação. Com os cantores é semelhante, o vibrato pode significar um estado de ânimo da personagem, mas não convém abusar dele a despropósito.
Rossini é uma das suas paixões e foi um compositor muito interpretado pela Malibran. No entanto, não o incluiu no disco embora faça parte do programa de concerto na Gulbenkian...
Um disco tem no máximo 80 minutos de música. A duração de um concerto permite fazer mais por isso quis dar ainda mais espaço a compositores importantes na vida da Malibran, como Rossini. No caso do CD tive de escolher entre a scena ed aria de Mendelssohn e a grande cena de Desdemona do Otelo, de Rossini, que dura 12 minutos.
Em contrapartida suprimiu a "Norma" do programa do concerto...
Também aí tive de escolher, ou fazia a Norma ou cena da Sonnambula. Decidi-me por esta última porque gosto muito do papel de Amina, vou fazê-lo proximamente e estou a gravá-lo com o Juan Diego Florez. Mas a experiência de gravar a Casta Diva foi excelente. Esta famosa ária está escrita de uma maneira muito diferente da que estamos habituados a ouvir nos discos da Caballé ou da Callas. No trabalho com o maestro Adam Fischer e a orquestra La Scintilla, com instrumentos de época, tentámos aproximar-nos o mais possível do gosto estilístico da época e da partitura autógrafa. As dinâmicas escritas por Bellini são piano, pianissimo e soto voce o que lhe dá um carácter totalmente diferente. O resultado é uma versão muito mais íntima, afinal de contas trata-se de uma oração.
Qual foi a reacção do público de ópera mais conservador?
É óbvio que há um amplo público de tradição na ópera. Mas se continuamos com a tradição esquecemos o compositor. Afinal de quem é a Norma? Mesmo o público mais tradicional deve saber o que escreveu Bellini. Depois pode gostar ou não e dizer que prefere as interpretações dos cantores dos anos 50 mas ficamos com uma gravação próxima daquilo que Bellini compôs.
Pensa continuar a explorar o repertório do início do século XIX?
Sim, mas com este conceito. Fazer bel canto com instrumentos modernos não faz sentido, já temos muitas gravações. Seria bom continuar por exemplo com óperas de Rossini como o Otelo ou La Gazza Ladra, que são fabulosas, e também fazer Bellini, Persiani ou Pacini em instrumentos da época. Mas sem abandonar a música barroca, claro. Pretendo fazer mais Handel, que adoro.
Quando começou a coleccionar objectos da Malibran?
Há cerca de 15 anos. Não só dela mas de toda a família. E também de Rossini que era um amigo próximo. Conheceu a Malibran quando era muito pequena, tinha sete ou oito anos, na altura da estreia do Barbeiro de Sevilha em Roma, no Teatro Argentina. Foi um fracasso, diz-se que Maria estava revoltada e dizia: "quando for cantora mesmo que seja o Papa a pedir jamais virei a cantar a esta cidade!" Na minha colecção tenho cartas de Rossini a Viardot, programas, jóias. Na capa do disco vê-se a pulseira que a Malibran usava na Cenerentola, de Rossini. Porque na Cenerentola, Angelina perde a pulseira e não um sapato como na Gata Borralheira de Walt Disney. Naquele tempo os sapatos não se podiam tirar, era um escândalo mostrar os tornozelos. Os documentos que reuni ajudaram-se a realizar este projecto mas quis dá-los à fundação Maria Malibran porque achava que seria bom poder partilhá-los com o público. Depois veio a ideia de colocar a exposição num camião, é um projecto totalmente louco! Mas de grande fascínio, uma vez que já foi visitada por 50 ou 55 mil pessoas. Estivemos em Paris, Londres, muitas cidades alemãs.
É pena não terem conseguido vir a Lisboa...
É uma pena, mas quem sabe, pode ser que possa vir noutra ocasião, podia fazer-se uma exposição no foyer do Teatro de São Carlos. Há muitas pessoas que não conhecem a Malibran, mesmo no meio musical. Se nos restringimos aos cantores que fizeram gravações perdemos a noção dos que existiram antes, que são tantos. Tende-se a esquecer o que não se pode documentar. Por isso o trabalho de pesquisa é também para mim uma paixão. Por um lado há o discurso do intérprete e por outro, no meu caso, esta vontade de descobrir tesouros escondidos. Sou um Indiana Jones da ópera lírica à procura da arca perdida!

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