O pintor do Porto que não pintou só o Porto

A obra de António Cruz vai além da cidade que aguarelou em tons nevoentos, aproximando-se da sua natureza mais íntima

a Um dia, António Cruz (1907-1983) recebeu no seu atelier uma pessoa, levada pelo escultor José Rodrigues, que lhe queria comprar uma aguarela. Depois de ouvir o pedido do visitante, o pintor dirigiu-se a um canto e trouxe-lhe uma das suas obras. O comprador perguntou-lhe o preço. "Oitenta contos". Não querendo dizer directamente a António Cruz que era muito caro, o visitante comentou: "Eu estava a pensar num quadro mais pequeno...". Cruz voltou ao canto do seu atelier, pegou numa tesoura e... cortou a aguarela a meio. "Aqui tem, mais pequena. O preço? Já lhe disse: oitenta contos!"Este episódio, evocado ao PÚBLICO pelo editor portuense José da Cruz Santos no decorrer de uma visita à exposição que o Museu Nacional de Soares dos Reis actualmente dedica a António Cruz, é bem elucidativo da personalidade do pintor cuja obra mais directamente se associa ao imaginário da cidade do Porto.
António Cruz era um homem de "feitio difícil", era "um solitário", de grande rigor de comportamento, quase "um asceta". Do ponto de vista artístico, era irredutível a qualquer escola, movimento ou teoria estética, e, para ele, o mercado da arte pura e simplesmente não existia. "Quando alguém aparecia para lhe comprar um quadro, ele sentia isso como se lhe estivessem a amputar uma parte de si", recorda Cruz Santos. O editor está em posição privilegiada para falar do pintor. Primeiro, porque ele era seu tio e porque com ele privou de perto, desde a infância. Depois, porque ao longo da sua actividade editorial tem dado especial atenção à obra do aguarelista, com a publicação de vários títulos sobre (ou ilustrados com) a sua pintura. Grande parte das obras reunidas no Museu de Soares dos Reis representam lugares e paisagens portuenses, o tema ao qual António Cruz mais se dedicou. Em diferentes secções, podem admirar-se as aguarelas com que imortalizou vistas das pontes sobre o Douro e de toda a cascata ribeirinha como autênticos "estados de alma", maioritariamente desvelados entre cortinas de nevoeiro ou fogachos de luz, conforme as estações do ano, as horas do dia ou o clima.
António Cruz preferia o Inverno: "É a estação do ano que me dá vida interior, e em que eu sinto a minha felicidade". Para além das razões estritamente pessoais, havia as razões estéticas: "Adoro o nevoeiro (...) A humidade nos rebocos das construções exacerba as cores", dizia o pintor que via o Porto como uma cidade talhada para pintores. A Ribeira, a cascata da cidade histórica e, em particular, a Sé, mas também o Jardim de S. Lázaro, constituem outros alvos preferidos da sua paleta. António Cruz teve durante vários anos atelier no passeio de S. Lázaro, daí o seu interesse pelo jardim. Foi nesse atelier que o editor, que morava ali perto, viveu longas horas da sua infância. "Eu passava o tempo lá, e ele punha-me a amassar o barro. Mas, em termos artísticos, não me sobrou nada - sou incapaz de desenhar a coisa mais insignificante", lamenta Cruz Santos, enquanto admira uma aguarela talhada pela luz quente do sol de Verão, representando o Largo da Ramadinha na década de 1940, mesmo ao lado do jardim, e que hoje perdeu o velho quiosque que aí existia.
Esta, como a maioria das obras expostas no Soares dos Reis, não está intitulada, facto que Cruz Santos lamenta e considera ser "uma lacuna". "O António Cruz, normalmente, não dava título aos seus quadros, mas é fácil identificar os lugares que ele pintou" - e foi isso que ele fez no catálogo que organizou para a exposição. Mas o interesse desta está também em mostrar que António Cruz não fez só aguarela, e não pintou apenas o Porto - o litoral de Esposende, paisagens do Minho e vistas da Escócia, onde o artista chegou a viver, estão, por exemplo, também aí documentados.
"Era um desenhador prodigioso, mas sempre muito exigente consigo próprio", diz Cruz Santos, lembrando que o pintor, por volta da década de 70, deixou pura e simplesmente de fazer aguarela. Uma citação do próprio artista ajudará a perceber a razão: "Quantas aguarelas pintei? Não posso fazer ideia, nem os números me interessam. Rasguei muitas. Muitas. E ainda não comecei a pintar. A verdade é essa. A melhor aguarela está por pintar".
A pintura Cabeça Grega (1929), de que Cruz Santos guarda em casa uma reprodução, na impossibilidade de ter o original, mostra uma outra dimensão da obra do artista, que cultivou também muito o retrato e a escultura, principalmente de mulheres. "Se ele via um rosto que o impressionasse, não descansava enquanto não o conseguia pintar ou esculpir", lembra o editor. E chama a atenção também para a representação de animais, outro tema cultivado por António Cruz. Mas, para o Porto, ele permanecerá "o pintor da cidade", como o registou Manoel de Oliveira no documentário que (com ele) realizou em 1956.
A exposição no Soares dos Reis, patente até 31 de Janeiro, é o último acto da evocação do centenário de António Cruz que se assinalou no ano passado e quase ficou esquecido pelos poderes públicos da cidade - a câmara limitou-se a atribuir ao pintor, a título póstumo, a Medalha Municipal de Mérito (Grau Ouro). Iniciativa do museu e da Cooperativa Árvore, a presente exposição é acompanhada por um catálogo organizado por José da Cruz Santos e Armando Alves, com prefácio de Vasco da Graça Moura. Os dois primeiros tinham-se já responsabilizado pela Edição do Centenário, álbum publicado pela Bial. Estas duas publicações ajudam a (re)conhecer a importância de António Cruz como autor de uma obra que está ainda por estudar no seu conjunto, até pela dispersão a que foi sujeita devido às características pessoais do autor. "Foi sempre vítima da sua solidão, do seu isolamento, que assumia", diz Cruz Santos. E lamenta, principalmente, que não tenha sido ainda verdadeiramente avaliado o lugar do António Cruz aguarelista, considerando que, aqui, o cotejo já não poderá ser feito com a arte no nosso país, mas antes com aqueles que têm uma efectiva tradição na aguarela, como a Inglaterra, onde William Turner foi uma influência assumida pelo pintor portuense.
António Cruz nem sempre dava título aos quadros, mas é fácil reconhecer os lugares do Porto que ele pintou

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