À procura dos crocodilos perdidos do Sara
O deserto do Sara já foi uma savana com leões, girafas, hipopótamos, crocodilos... De há quatro mil anos para cá, a chuva escasseou, as árvores desapareceram, o deserto surgiu. Todas aquelas espécies fugiram, menos uma, os crocodilos. Um cientista português procura essas relíquias biológicas
a Se há coisa que os crocodilos do Nilo, que habitam várias regiões de África, são é heróis de resistência. Alguns até aguentam as condições de seca extrema do deserto do Sara, onde ficaram isolados há quatro mil anos. Vivem aí em pequenas lagoas, por vezes só com água na estação das chuvas, de Julho a Agosto. Nessas circunstâncias, têm de se preparar para enfrentar uma autêntica provação: comer o que podem e reproduzir-se em muito pouco tempo, tudo em dois meses frenéticos, para passar os restantes dez escondidos nas rochas, num estado de dormência e inactividade, à espera das próximas chuvas. São estes crocodilos, relíquias do tempo em que o Sara não era um deserto, mas uma savana, com árvores aqui e acolá, leões, girafas ou hipopótamos, de que o biólogo José Carlos Brito, de 36 anos, anda à procura.
Há vários milénios, espécies como aquelas viviam espalhadas na região que agora é o Sara. Quando o clima se tornou mais árido, a chuva escasseou e as temperaturas subiram, o deserto começou a avançar e essas populações de animais desapareceram. Com a excepção do crocodilo do Nilo, ou Crocodylus niloticus, que permaneceu encurralado em dois redutos apenas: as montanhas do Tangat, na Mauritânia, e as montanhas de Ennedi, no Chade. "Pode parecer um bocado estranho, mas há mesmo crocodilos no meio do deserto: são populações que sobreviveram à desertificação", diz José Brito, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto.
Há oito mil anos, nem sequer existia deserto do Sara. Desde que reapareceu, há quatro mil anos, tem vindo a aumentar de dimensão, embora ainda aquém da que atingiu há 20 mil anos. A origem de tais variações de tamanho tem-se devido a oscilações do eixo da Terra, e não à mão do homem, pelo menos no passado.
Migração entre lagoas?
Em Dezembro, José Brito regressou a Portugal da sua sexta viagem à Mauritânia. Primeiro foi lá como turista em 2001, depois como turista e cientista a expensas próprias, mais tarde, em 2004, num projecto sobre lagartixas-de-dentes-serreados financiado pela National Geographic Society. Nessa altura, já há muito que estava apaixonado por África, pelo deserto, pela paisagem ("gosto muito daquelas paisagens extensas, do clima árido..."). Gosta tanto que tinha de encontrar outro projecto científico que lhe permitisse voltar ao Sara, e foi assim que pensou nos crocodilos do Nilo.
Os problemas políticos no Chade fizeram-no abandonar a ideia de ir lá, mas a viagem programada para Setembro deste ano à Mauritânia mantém-se, apesar do recente assassinato de quatro franceses que estiveram na origem do cancelamento do rali Lisboa-Dakar de 2008.
José Brito quer regressar com uma equipa de quatro cientistas, para iniciar dois meses e meio de trabalho de campo sobre os crocodilos (e não só) das lagoas do Sara, de novo um projecto financiado pela National Geographic, em 20 mil dólares, ou cerca de 13.500 euros. Para a Primavera de 2009, está planeada uma segunda expedição do projecto.
Certos peixes e anfíbios, como o sapo da savana, também puderam manter-se até à actualidade, igualmente isolados das restantes populações da África subsariana, graças às lagoas do Sara. Aliás, embora as estrelas mediáticas do projecto sejam os crocodilos, a ideia de José Brito é ver se todos aqueles animais conseguem deslocar-se entre as lagoas, geralmente afastadas. "Durante os dois meses de chuva, nalgumas bacias hidrográficas formam-se rios temporários que unem essas lagoas. Isto abre a hipótese de haver migrações", diz o biólogo. "No caso dos peixes e anfíbios, essas migrações são mais fáceis do que no caso dos crocodilos."
A genética poderá ajudar a deslindar a questão, pelo que a equipa de José Brito vai retirar-lhes bocadinhos de tecido para análises de ADN. "Em Setembro, começa a sério o trabalho de captura de crocodilos. Já apanhei juvenis com um camaroeiro, mas com os adultos teremos de recorrer a armadilhas."
Este trabalho ajudará a perceber se os crocodilos do Nilo esquecidos no meio do Sara estarão condenados a desaparecer. "Se não existir fluxo genético e migrações entre as várias lagoas, o isolamento de quatro mil anos destas populações poderá traduzir-se em problemas