Da liberdade partidária

Há que observar sempre os princípios de razoabilidade e de proporcionalidade, que são inerentes ao Estado de direito

A iniciativa do Tribunal Constitucional de exigir aos partidos políticos a prova de que têm pelo menos 5000 inscritos, sob pena de dissolução, gerou a contestação não somente dos pequenos partidos que notoriamente não cumprem tal requisito, mas também de diversos comentadores, por o considerarem atentatório da liberdade política. De facto, a nova lei dos partidos políticos de 2003 introduziu, entre outras, duas alterações quanto ao ponto aqui em discussão. Primeiro, elevou de 5000 para 7500 o número de subscritores da criação de novos partidos e fixou em 5000 o número mínimo de inscritos no partido como condição da sua manutenção. Segundo, encarregou o Tribunal Constitucional de proceder à verificação periódica (cada cinco anos) do referido requisito, embora sem estabelecer o modo da aferição da filiação partidária.
Os partidos políticos e a liberdade partidária são instituições essenciais das democracias liberais. Mas a democracia liberal constitui um compromisso entre duas vertentes nem sempre harmónicas: por um lado, a vertente liberal, que tem a ver com liberdade política, quer individual quer colectiva (incluindo a liberdade de criação e de organização partidária); por outro lado, a vertente democrática, que tem a ver com a universalidade e a igualdade dos direitos políticos, bem como a genuinidade da expressão da vontade popular.
Democracia política e liberalismo político não são a mesma coisa, podendo mesmo excluir-se reciprocamente. O liberalismo clássico era essencialmente antidemocrático, vendo na democracia, incluindo o sufrágio universal e o governo da maioria, uma séria ameaça à liberdade política. Muito do pensamento liberal radical contemporâneo compartilha deste ponto de vista, mesmo quanto de forma não explícita. Inversamente, o pensamento democrático inicial era assaz crítico do liberalismo político, no qual via como uma restrição à vontade popular. Na sua vertente mais radical, a teoria democrática desvalorizava a separação de poderes e as garantias das liberdades políticas, em nome da democracia plena. Não é outra, aliás, a lógica das chamadas "democracias populares" e outras formas de democracia iliberal.
A democracia liberal constitui um compromisso entre a componente liberal e a componente democrática. É uma democracia limitada pela liberdade política e um liberalismo político limitado pela democracia política. Entre as garantias da liberdade política que limitam a democracia contam-se a separação de poderes, as liberdades públicas (incluindo a liberdade partidária), os direitos da oposição, a justiça constitucional, etc. Entre as garantias democráticas que limitam a liberdade política contam-se as restrições relativas às organizações antidemocráticas, as inelegibilidades e incompatibilidades políticas, os limites à renovação de mandatos electivos, o princípio da "paridade de género", as obrigações de divulgação de património e rendimentos dos titulares de cargos políticos, etc.
É nesta sede que se enquadram os limites à liberdade partidária, que aliás não se resumem à exigência de número mínimo de subscritores para a criação de partidos políticos, antes se consubstanciam em diversas outras proibições ou obrigações, como é o caso da proibição de partidos racistas e fascistas (bem como de partidos étnicos, religiosos, etc.), a obrigação de democracia interna (incluindo as eleições internas por voto secreto), a proibição de financiamento partidário por empresas e a obrigação de transparência das finanças partidárias, etc. Em contrapartida dessas limitações, os partidos políticos gozam também vários direitos e regalias, tendentes a assegurar e a fomentar as suas funções políticas, incluindo o direito de candidatura eleitoral (que pode ser exclusive deles), o direito ao financiamento público, o direito de antena (pelo menos na rádio e na televisão públicas), certas isenções fiscais, etc.

Tal como em muitos outros países, também entre nós os partidos políticos estão longe de ser organizações inteiramente livres quanto à sua criação e organização, como qualquer outra organização privada. A sua "incorporação constitucional" não constitui somente uma garantia institucional da sua existência como instrumento da organização do poder político mas também a sua "funcionalização" enquanto instituições de mediação da organização e da participação democrática. Sob o ponto de vista político, só de uma perspectiva liberal radical é que se pode sustentar que os partidos políticos deveriam ser de criação e organização totalmente livres, sem qualquer requisito ou condicionamento. Basta mencionar os direitos e regalias de que os partidos gozam entre nós, a começar pela candidatura às eleições - direito exclusivo no caso das eleições europeias, parlamentares e regionais - para perceber que é plenamente justificável a exigência de um mínimo de consistência e de suporte social para a existência de um partido político, tanto mais que a Constituição e a lei prevêem a existência de outras associações políticas que não precisam de tais requisitos par a sua criação e funcionamento.
No entanto, não estando fixados pela própria Constituição os requisitos relativos à criação de partidos, eles só podem ser justificados à luz de valores constitucionais, nomeadamente o princípio democrático. Havendo aí uma incontornável margem de liberdade de legislativa na fixação de tais requisitos, há, porém, que observar sempre os princípios de razoabilidade e de proporcionalidade, que são inerentes ao Estado de direito, não podendo aqueles ser arbitrários nem de tal modo exigentes que prejudiquem desnecessariamente a liberdade de criação e de organização partidária, bem como a liberdade individual.
No caso concreto, a pergunta decisiva é a seguinte: os requisitos em causa são imprescindíveis para satisfazer os objectivos constitucionais que os podem justificar? Professor universitário

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