Torne-se perito

Benedicto e Afonso

a Benedicto é nome de Papa, Afonso é nome de rei. Mas nesta história são dois cidadãos, por sinal músicos, que um dia se conheceram e ficaram amigos. A convite do primeiro, o segundo andou pela Galiza em digressão cantante até que, num dia em que se entusiasmou mais, cantou pela primeira vez ao vivo uma canção que havia composto como hino a pedido de uma colectividade da margem sul do Tejo, a Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense. A canção já tinha sido registada em disco, em 1971, por sinal gravado em França, terra de emigrações políticas e outras, mas foi em Santiago de Compostela, a 10 de Maio de 1972, que Grândola Vila Morena foi cantada pela primeira vez num espectáculo quase secreto e diante de uma audiência estudantil (Portugal e Espanha viviam, à época, sob ditaduras). Depois dessa digressão, que reforçou ainda mais a sua amizade, Benedicto García Villar, expoente da nova canção galega, participou em Novembro de 1972, em Madrid, na gravação do álbum de José Afonso Eu Vou Ser Como a Toupeira. Faltava um ano e pouco mais de cinco meses para o 25 de Abril, que viria a ser conhecido em Portugal por revolução dos cravos, em Madrid por "revolución de los claveles" e na Galiza por "revolución dos caraveis". E onde Grândola viria a ser senha, com direito a, mais tarde, conhecer as mais incríveis versões: de Amália, Nara Leão, Charlie Haden, Pascal Comelade, até de Roberto Leal.Benedicto viria ainda a ser um dos impulsionadores da maratona musical Galiza a José Afonso, que em Agosto de 1985 reuniu inúmeros músicos em homenagem ao cantor e poeta português que nesse momento lutava corajosamente pela vida, contra a doença que o viria a vitimar em 1987. E em 2007 voltou a estar envolvido numa iniciativa que, a terminar o ano, levou a que o nome de José Afonso fosse votado em sessão autárquica para uma rua de Santiago de Compostela, na terra a que José Afonso ficou para sempre ligado. "A Galiza é para mim também uma espécie de pátria espiritual irmã da nossa", disse ele a José António Salvador (O Rosto de Utopia, ed. Afrontamento, 1999). E a Galiza nunca mais deixou de cantá-lo. O Festival Cantos na Maré, apostando na ligação da Galiza a Portugal, África e Brasil, é, ainda hoje, filho dilecto dessa paixão antiga.
Mas o 2007 que agora findará, ano em que se assinalaram duas décadas sobre a morte do cantor e compositor, foi fértil em trabalhos sobre a sua música. A Associação José Afonso revitalizou-se (um dos seus lançamentos, o livro Escritas do Maio, de Miguel Gouveia, permite levar a sua obra até às escolas e às crianças) e houve discos inteiros a ele dedicados (Couple Coffee & Band, Cristina Branco, Jacinta, Erva de Cheiro, Frei Fado d"El Rei, Terra d"água, Banda Futrica). Uma vaga meritória de onde sobressai, pela criatividade da transformação proposta, C"o As Tamanquinhas do Zeca!, dos Couple Coffee, duo formado pelos brasileiros Luanda Cozetti e Norton Daiello. Obra-prima de um ano que, a despeito da morte, trouxe José Afonso de novo para junto de nós.

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