Torne-se perito

Viagem à volta do mundo na Rua do Cimo de Vila

Uma pequena rua, no centro do Porto, já foi território da burguesia mercantil. Hoje, mistura portuenses antigos com imigrantes da Índia, da China, da Argélia, de África e do Bangladesh. Samir Bouça, preso por suspeitas de terrorismo internacional, tinha lá uma barbearia

a Na tasca, tecto decorado com uma vintena de presuntos, todos se calam para deixar o empregado falar. "Esta rua é uma enciclopédia do Porto", anuncia, com evidente orgulho. Até aqueles que os copos de tinto já levam embalados se calam por sua vez. "Olhe que aqui vinha gente de alto nível. A Amália Rodrigues, sempre que vinha ao Porto, estava aqui batidinha. E o Tristão da Silva também. Esse sentava-se sempre naquela mesa, ali ao canto." E depois, recordado do pote multicultural em que se transformou a Rua do Cimo de Vila, no centro histórico do Porto, emenda: "Agora é diferente. Vieram os chineses, estragar o negócio às pessoas, e, atrás deles, os paquistaneses, os indianos, os argelinos, os marroquinos, os africanos e os outros todos."Encravada entre o Teatro Nacional de S. João e a Sé do Porto, a Rua do Cimo de Vila saltou para os jornais à boleia da detenção do argelino Samir Bouça, que ali manteve uma barbearia, antes de ser detido pela PJ, por suspeitas de ligações ao terrorismo internacional, no dia 6 de Novembro. Nessa altura, apareceram fotógrafos e jornalistas cheios de pontos de interrogação na ponta das esferográficas e depois... e depois nada. Os portuenses, daqueles com sotaque a sério, voltaram a conviver em anónima harmonia com imigrantes vindos do Paquistão, do Bangladesh, da China (agora menos), de Cabo Verde, da Argélia, da Guiné-Bissau...
É pegar num mapa-mundo e escolher uma origem para a mistura de raças que por estes dias se cruzam naquelas poucas centenas de metros. Entra-se por cima, pela Praça da Batalha, e esbarra-se logo no número 2, cujas portas se abrem para a Casa Louro, a tal tasca predilecta da fadista. "Esta rua é uma enciclopédia", retoma Joaquim Nogueira, o empregado de serviço, "porque já teve de tudo: hotéis, tascas, restaurantes, comércio de categoria, prostituição, droga, tudo". E ele sabe do que fala. Começou a servir copos ao balcão com 11 anos e já vai com 47 de vida. "Vim trabalhar para este senhor aqui", diz, apontando uma fotografia em que o dono de uma gigantesca barriga posa, senhorial, junto a um porco.
O paquistanês e o chinês
De volta à rua, ignora-se o grasnar das gaivotas e vê-se numa das lojas um velho com jilaba e chapéu muçulmano a apontar qualquer coisa num grosso livro verde a um adolescente chinês. Este aquiesce com a cabeça sem parar de sorrir. Não falam. O velho explica que veio do Paquistão e que o livro é um dicionário de português-chinês. É com ele que se entende com o filho do patrão, que - como o pai - não fala mais nenhuma língua a não ser a do país de origem. "Costumamos falar com as mãos, mas, quando isso não chega, há sempre o dicionário", desdramatiza o velho. Chama-se Rajá Zahid Iqbal, tem 49 anos, e, além do urdu (língua indo-europeia), fala inglês, alemão e português. Viveu alguns anos em Lisboa e, há cinco meses, mudou-se para a Rua do Cimo de Vila, para trabalhar para um comerciante chinês. "É muito bom, aqui. Já contei pelo menos cem paquistaneses e até já criámos uma mesquita aqui perto, para poder rezar."
Continuando rente às fachadas, encontra-se a Pensão Mondariz. "Foi fundada por galegos e comia-se ali muito bem", recorda o historiador Hélder Pacheco. É ele quem abre o calhamaço histórico. "É uma das ruas mais antigas da cidade e uma das mais emblemáticas da cidade medieval. Era por ali que se saía da cidade para Trás-os-Montes. Durante a Idade Média, era uma rua da sólida burguesia mercantil portuense." Não por acaso, o alcaide-mor do Porto, João Rodrigues de Sá, edifica ali o seu palácio, mais tarde comprado pela marquesa de Abrantes. "A partir do século XIX, aquilo foi-se proletarizando e abriu-se aos artesãos, pequenos comerciantes e operários", completa o historiador.
Desse tempo, restam alguns comerciantes para amostra. A Casa Crocodilo, com o dito animal suspenso do tecto em versão embalsamada, continua a assegurar o restauro de todos os tipos de cabedais. Na loja do senhor Delfim Almeida, reparam-se máquinas de costura antigas. Antigas Singer, em ferro preto, há várias a reluzir como novas. "O que me safa o negócio é o pessoal das aldeias que traz as máquinas para arranjar", explica Delfim, limpando as mãos besuntadas de óleo às calças. "Dantes, vinham muitos mais. O pessoal chegava da aldeia, escolhia uma máquina e pedia: "Ponha-ma pronta até às seis, que vou ali às meninas e já volto"." E voltava. "Às vezes já com as esposas", brinca. Mas isso era dantes. "Agora, nem de meninas se pode falar. As que aí estão, já passam dos sessenta..."
Convivência pacífica
Recua-se algumas portas e repara-se nas duas mulheres que desafiam o frio à porta do bar Top Ten, com um daqueles reclamos que iluminam um copo de cocktail. Lá dentro, uma bola de espelhos, alguns vultos femininos, mas nada de clientela. No número 129, há uma secular placa vermelha e branca a anunciar brinquedos, bijutarias e novidades, mas espreita-se pela montra e vêem-se chineses com a habitual parafernália de rádios de pilhas, relógios e calculadoras. Logo a seguir, uma loja que vende pedras semipreciosas ao quilo. Ágatas, ametistas, esmeraldas. Directamente vindas do Bangladesh, segundo o proprietário, e prontinhas a incrustar em anéis, colares e pulseiras. "São difíceis de encontrar", confirma uma cliente, sem parar de mergulhar os dedos nos cestos espalhados pelo chão.
Nas janelas, uma velha arrasta-se até à varanda para apalpar a roupa a secar: uma camisola, umas calças de fato de treino, um soutien, toalhas. Como em quase todo o centro histórico, o vento empurra a pobreza pelas janelas abertas. Mas aqui o cheiro a estrugido do jantar mistura-se com o de caril e de açafrão. Eis um supermercado indiano, cheio de legumes verdes com formas estranhas, enlatados, pacotes de cereais. "Os clientes são portugueses, indianos, moçambicanos...", avisa logo Nusrain Qurashi. Original do Sul da Índia, este indiano de 40 anos chegou a Portugal há seis, depois de uma curta passagem por Inglaterra. "Os ingleses são racistas, põem os pretos para um lado e os brancos para outro. Aqui, as pessoas não têm vergonha de se misturar."
Depois de anos a estudar o tecido social do centro histórico do Porto, a antropóloga Paula Mota Santos confirma que "o que torna a cidade interessante é que não existem os enclaves étnicos que se vêem em cidades como Londres". Claro que o fenómeno da imigração nas duas cidades não é numericamente comparável. Mas "o que se vê em Cimo de Vila é uma convivência pacífica de muitas diferentes culturas". Mais tarde ver-se-á, porque "há coisas que só o tempo pode potenciar".
Por enquanto, o mulherio de Cimo de Vila lá vai convivendo e fazendo negócio com gente que fala línguas de que nunca tinha ouvido sequer falar. "O que nos vale é que eles aprendem depressa a falar como a gente. Não são como os chineses", congratula-se Glória Reis, referindo-se aos "índios" do supermercado, onde chega a aviar alguma mercearia.
Com 68 anos e um problema da coluna que lhe atrapalha os movimentos, saiu para a missa e aproveitou para pôr a conversa em dia com a vizinha. "Os paquistaneses são os de barbas grandes e vestido", explica, dirigindo-se à vizinha. "Parece que do país deles para o dos "índios" ainda são cinco dias de viagem", acrescenta.
Antiga empregada doméstica, Glória mora na rua há 40 anos e é viúva há muitos menos do que isso. "Morreu no dia dos meus anos. Foi um presente que Deus me deu, porque aquilo foram dezasseis anos de porrada dia sim, dia sim", desabafa, espalmando as mãos em direcção ao céu, como se rezasse. "Agora, que podia ser feliz, a coluna não ajuda muito. Mas já deu para fazer conhecimento com o "índio" do supermercado. Eu passo e ele diz: "Olá". Eu gosto bem de andar por aí, a ver os modos desta gente". Não é pecado querer espreitar o mundo a partir da rua em que se vive.

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