D. Catarina, a rainha sobrevivente

Assistiu à morte dos irmãos, dos nove filhos e do marido, D. João III. Foi ela a regente na menoridade do rei D. Sebastião, seu neto. Ana Isabel Buescu conta-lhe como foi em Catarina de Áustria: Infanta de Tordesilhas - Rainha de Portugal, que acaba de chegar às livrarias

a Quando enviuvou, em Junho de 1557, D. Catarina tinha cinquentaanos de idade. Ao contrário de D. João III, que ao rondar os cinquenta
era um homem prematuramente envelhecido por achaques e
infortúnios, ao cumprir o meio século de existência a rainha parecia chegar a um momento de maturidade. Não que fossem poucos os desgostos e preocupações que, como vimos, sob o ponto de vista pessoal e privado haviam pontuado de forma tão funesta o seu percurso de vida. A morte de todos os seus filhos, mesmo tendo em conta a fragilidade da vida na
sociedade de então, fazia da rainha de Portugal e do rei seu marido os
protagonistas de um drama singular, que seguia talvez os desígnios divinos, mas desafiava, afinal, a ordem natural das coisas - que era a de os filhos sobreviverem aos pais.
Ao ficar viúva, a D. Catarina, que vira descer à terra os nove filhos
que gerara, restavam dois únicos frutos nascidos daquela desventurada descendência - os seus netos, D. Sebastião, rei de três anos de idade, e D. Carlos, infante de Castela, de quem só conhecia o nome, órfão da sua amada filha Maria. Num outro plano, que era diferente na ordem dos seus afectos mas que mostrava até que ponto D. Catarina era, em certo sentido, uma sobrevivente, em breve a rainha-viúva de Portugal seria a única filha viva de Joana I de Castela e de Filipe, o Belo, ao desaparecerem todos os seus irmãos - Leonor, Carlos e Maria em 1558, Fernando poucos anos mais tarde, em 1564.
Era pois esta mulher, a quem os muitos infortúnios não haviam
logrado abater, que se via, com a morte de D. João III e na menoridade
da criança que as leis da sucessão tornaram rei de Portugal, perante o
desafio da regência do reino, de um reino que ela aprendera a conhecer e talvez a amar, já tão profundamente diferente daquele onde entrara, jovem rainha de dezoito anos de idade, no início de 1525. Naqueles trinta anos, muita coisa mudara. Desde logo naquele imenso e ao mesmo tempo frágil império que se estendia por três continentes que, superada a messiânica concepção de D. Manuel e o seu ímpeto cruzadístico-imperial, tomara com D. João III, em certos aspectos, uma outra configuração, desenhando novos equilíbrios e futuros centros de gravidade - como era o caso do Brasil (...).
Religião e intolerância
Profundamente diferente se tornara também o reino, no decurso
daqueles trinta cruciais anos, sob o ponto de vista religioso, culminando
com a chegada do tribunal da fé que, desejado à imagem e semelhança
da Inquisição dos Reis Católicos, seus avós, D. João III de forma tão
obstinada procurara obter de Roma, e conseguira trazer para Portugal
em 1536. Juntos, no ano de 1540, os reis de Portugal, D. João III e
D. Catarina, assistiam, das varandas do Paço da Ribeira, ao primeiro
auto-de-fé em Lisboa, que de forma crua e terrífica mostrava, numa
Europa ferida pela cisão religiosa, os dolorosos e sombrios caminhos da
intolerância. Nesse mesmo ano de 1540 chegava a Lisboa o jesuíta Francisco Xavier, rosto de uma Igreja conquistadora e militante, que no ano seguinte havia de partir da capital do reino, com o incentivo e a emoção dos reis, a evangelizar o Oriente, figura de proa de uma ordem religiosa que tão solidamente se implantava em Portugal - e junto do poder havia de conseguir um indiscutível mas não consensual protagonismo. (...)
Mas agora que D. João III estava morto, muita coisa mudava na vida
de D. Catarina. Arrastadas as bandeiras e quebrados os escudos assinalando o fim do poder do monarca defunto, o conselho de Estado, reunido no paço da Ribeira, conferia o governo do reino e a tutoria do neto à rainha viúva. A morte de D. João III fazia pois recair sobre D. Catarina o pesado e delicado fardo da regência do reino na menoridade do rei D. Sebastião, decisão que, porventura delineada pelo próprio monarca mas que o rei, como vimos, não deixou definitivamente estabelecida em testamento, e contestada por vários que pretendiam a convocação de cortes gerais, acabou por resultar de um acordo tácito entre forças e
interesses em confronto na corte portuguesa. A indigitação do cardeal
D. Henrique para coadjuvar D. Catarina na governação, para além de traduzir a necessidade de alcançar tal acordo, era ainda um sinal de compromisso com a tradição sucessória do reino, segundo a qual devia ser chamado à regência o parente varão mais chegado ao rei - e essa condição pertencia a D. Henrique, irmão de D. João III e último filho varão vivo do rei D. Manuel.
Situação política delicada
Mas num momento em que eram maiores as interrogações do que
as certezas, os equilíbrios na corte e no reino revelavam-se precários e
sujeitos a muitas e desencontradas movimentações que, sendo embora
problemático dividir de forma absoluta entre a existência de um partido "nacional", organizado em torno do cardeal D. Henrique, hostil
à influência e ascendente do vizinho e poderoso reino de Castela e à
submissão dos interesses portugueses na órbita do colosso espanhol, e um partido "castelhano" que se acolhia à sombra da regente, em todo o caso exprimiam, sob o ponto de vista político, sensibilidades e interesses divergentes e em muitos aspectos mesmo antagónicos.
No epicentro dos acontecimentos estava D. Catarina sobre a qual,
sobretudo agora, depois da morte do rei, pareciam recair todos os ressentimentos e melindres que derivavam da delicadíssima situação política em que se encontrava o reino português - na memória de muitos estava o resoluto e decisivo papel que a soberana tivera nos casamentos ibéricos da infanta D. Maria e do príncipe D. João sem olhar à reserva e à oposição política que então se levantaram, a sua lealdade e devoção a Carlos V, feita de um misto de amor filial e de fidelidade dinástica, a sua
condição, que nunca verdadeiramente se esbateu, de rainha castelhana, patente em muitos dos seus gestos, dos seus gostos e das suas devoções, na língua que para sempre foi a sua, quer escrita quer falada... E a forma como as coisas foram acontecendo, com a morte do príncipe D. João e o carregado clima de ansiedade que precedeu o nascimento do Desejado, exacerbou a crispação anticastelhana que inegavelmente se mostrou no reino, que os zelosos embaixadores castelhanos não deixavam de comentar na sua correspondência e acerca da qual informavam, de forma mais ou menos eufemística, o imperador Carlos V.
(...) Questões tão sensíveis como a constituição da casa do pequenino rei D. Sebastião, em que, depois de um período em que naturalmente a casa do rei funcionou em estreita ligação com a da rainha, D. Catarina frustrou as expectativas dos titulares das grandes casas portuguesas, não preenchendo os cargos, argumentando com a curta idade de D. Sebastião, e reduzindo outros a formas castelhanas ou a presença, por sua iniciativa, de castelhanos no conselho régio, como assinalava o embaixador Sánchez de Córdoba em carta de 4 de Outubro de 1557 à princesa D. Joana, eram medidas que geravam insatisfação e indisfarçável descontentamento no reino.
Mas D. Catarina tinha quem a respaldasse no interior da corte e no
próprio âmago do poder, e aqui reencontramos essa figura central da
monarquia portuguesa na segunda metade de Quinhentos e que havia de jogar, também agora, um papel determinante nos meandros da luta política e da condução dos destinos do reino. Falamos de Pero de Alcáçova Carneiro. O experiente e astuto secretário de Estado de D. João III, que estivera por dentro do processo que dera a regência a D. Catarina, suscitava a animadversão de muitas figuras da corte, com destaque para o cardeal D. Henrique, que o detestava, como era notório, e havia de ser um dos principais sustentáculos da rainha, que nele depositava uma
confiança diríamos absoluta, e já antiga. (...)
Um mestre para o jovem rei
Entretanto, D. Sebastião ia crescendo, rodeado de mimos e receios, na casa da rainha sua avó, sendo seu aio, encarregado da sua guarda e criação, o ilustre fidalgo D. Aleixo de Menezes, filho do 1.o conde de Cantanhede.
Pouco tempo havia passado sobre o grave episódio da embaixada
do padre Borja a Portugal quando nova circunstância veio tornar absolutamente explícito o clima de conflito latente na corte e a divergência entre facções de que os rostos mais visíveis eram D. Catarina e o cardeal D. Henrique. Se, de uma maneira ou outra, tudo girava, afinal, em torno daquela figura de criança que era rei de Portugal, agora, naquele difícil ano de 1559 em que ganhavam forma as movimentações da princesa
D. Joana, com o apoio activo de Lourenço Pires de Távora, um dos mais firmes adversários da regência de D. Catarina, para voltar ao reino de onde partira deixando o filho, tinha lugar importante decisão respeitante ao pequenino rei. D. Sebastião contava de cinco para seis anos de idade, era necessário cuidar da sua instrução e dar-lhe um mestre.
Num processo que veio a revelar-se muito atribulado, as divergências
que marcaram esta escolha reflectiam bem a ansiedade que rodeava o jovem monarca, e o desencontro de interesses que se entrechocavam na corte no que dizia respeito aos caminhos a dar à sua instrução. São conhecidos os momentos principais que conduziram à escolha do jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, nome que tinha a preferência do cardeal D. Henrique, que pretendia "dar a El Rei um Mestre, que juntamente com a Latinidade o instruísse nas virtudes morais, e Cristãs, principalmente modéstia, religião, e continência".
Catarina de Áustria: Infanta de Tordesilhas - Rainha de Portugal
Autor: Ana Isabel Buescu
Editor: Esfera dos Livros
480 pág.
30 euros

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