Os antolhos da História

O grande quadro hoje em dia é a possível passagem da liderança global do Ocidente para a Ásia

Uma visão distorcida do presente é a pior maneira possível de nos prepararmos para os desafios do futuro. Descrever a actual luta contra o terrorismo internacional como a "Quarta Guerra Mundial", como o proeminente neoconservador americano Norman Podhoretz faz no seu último livro, é perseverar em algo que é errado por inúmeras razões.Antes de mais, onde e quando é que foi a Terceira Guerra Mundial? A Guerra Fria, precisamente porque nunca chegou a ser "Quente", não pode ser considerada equivalente à Primeira ou à Segunda Guerra Mundial.
É evidente que a referência à "Guerra Mundial" visa criar uma lógica de "nós" contra "eles", mas isso não corresponde à natureza do desafio colocado pelo islão radical, dada a complexidade e as muitas divisões que existem no mundo muçulmano. De facto, a militarização do nosso pensamento torna-nos incapazes de encontrar as respostas certas, que devem ser tanto políticas como do domínio da segurança.
Como sempre, as palavras são importantes, porque podem ser facilmente transformadas em armas que se voltam contra aqueles que as usam impropriamente. As analogias erradas já conduziram a América ao desastre no Iraque - que não tinha nada em comum com a Alemanha ou o Japão depois da Segunda Guerra Mundial - graças ao paralelo que algumas pessoas na Administração Bush usaram para argumentar que a democracia podia ser implantada em países que tinham acabado de sofrer uma ditadura, através da sua ocupação.
É claro que nos devemos proteger da maneira mais séria e mais determinada possível da ameaça que o terrorismo poderia representar se, por exemplo, os extremistas conseguissem pôr a mão em armas nucleares ou biológicas. E é claro que vai ser necessário recorrer a serviços de informação, diplomacia, a forças de segurança, e que será necessário educar as pessoas para as exigências da vida sob a sombra de uma ameaça invisível. Uma certa "israelização" da nossa vida quotidiana tornou-se infelizmente inevitável.
Mas isso não significa que devamos ficar literalmente obcecados com o terrorismo ao ponto de perder de vista desafios históricos mais amplos. O assassinato do herdeiro do Império Austro-Húngaro em Sarajevo em 1914 não foi a causa da Primeira Guerra Mundial, mas apenas o seu pretexto. O grande quadro nessa altura não era a "conspiração anarquista" para desestabilizar impérios, mas a ascensão dos nacionalismos exacerbados, associados ao instinto suicida de uma ordem social decadente e o mecanismo fatal da lógica das "alianças secretas".
O grande quadro nessa altura era que, com a revolução dos transportes e a utilização de exércitos de massas, a guerra já não podia ser vista como a continuação da política por outros meios. A industrialização da guerra tinha-a tornado "obsoleta" em termos racionais. A Primeira Guerra Mundial significou o suicídio da Europa muito mais do que a derrota da Alemanha, da Áustria e do Império Otomano.
O grande quadro hoje em dia é a possível passagem da liderança global do Ocidente para a Ásia. A reacção paranóica dos neoconservadores na América à ameaça terrorista pode apenas acelerar o processo, se não o tornar inevitável, pondo em perigo os nossos valores democráticos e enfraquecendo assim o "soft power" dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que alimenta a fornalha da causa terrorista.
O terrorismo é o produto, no seio de uma facção do islão, de uma mistura de extremismo religioso, de nacionalismo frustrado e daquilo que Dostoievski chamava niilismo. O desafio que se nos coloca é compreender as causas profundas destas forças e conseguir distingui-las entre si. Por outras palavras, estamos confrontados com o desafio da complexidade, que nos exige que consigamos garantir que uma pequena minoria não irá receber reforços substanciais.
Maior estabilidade no Médio Oriente - que implica uma resolução do conflito israelo-palestiniano -, juntamente com uma mais eficaz integração de muçulmanos nas nossas sociedades, baseada em justiça social e numa mais forte mensagem humanística, é o elemento-chave de uma estratégia ocidental coesa. Se perdermos isso de vista na nossa luta contra o terrorismo e as suas causas, seremos incapazes de encarar com sucesso o desafio de longo prazo que nos é colocado pela "Chíndia". Fundador e conselheiro sénior do Instituto de Relações Internacionais de França, é actualmente professor no College of Europe em Natolin, Varsóvia © Project Syndicate, 2007

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