Joaquim Furtado "Aquela foi a guerra, para uma geração"

Houve "coisas terríveis" feitas pelos movimentos nacionalistas
e "coisas terríveis" feitas pelos portugueses durante os 13 anos
de guerra em África, diz o autor de uma série de 18 episódios cuja primeira parte começa esta terça-feira. O administrador da RTP,
Luís Marques, classifica o trabalho como um "legado de Joaquim Furtado e da RTP aos seus contemporâneos e às gerações vindouras"

a Joaquim Furtado chamou Guerra à série de nove episódios que realizou e narra a partir de terça-feira, 16, na RTP. Acrescentou-lhe, em subtítulo, as três formas como eram chamadas (em função das posições ideológicas de quem a elas se referia) as confrontações armadas que Portugal manteve, durante 13 anos, em três dos territórios africanos que ocupava em África: "colonial", "do ultramar", "de libertação".Em 1999, a RTP, onde deixara de ser, há pouco, director-coordenador de Informação e de Programas, deu-lhe luz verde para contar aquele período histórico. Com a sua saída da empresa registaram-se várias paragens no trabalho, cuja dimensão foi aumentando à medida que o autor visionava e catalogava milhares de filmes nos arquivos da estação pública de televisão e dos três ramos das forças armadas e entrevistava cerca de 350 protagonistas, militares e civis, de todos os lados do conflito.
A série poderá provocar polémica mesmo tendo passado mais de 30 anos sobre o fim da guerra, admite. Sublinha, contudo, que procurou manter a distância crítica. "O que eu penso há-de aparecer porque é praticamente inevitável, mas a minha atitude não é a de alguém que está a querer construir uma tese."
Entrevista feita numa das salas de montagem, onde Joaquim Furtado trabalha actualmente nos últimos episódios da segunda parte da série, sem data definida de exibição, mas que poderá ocorrer ainda no primeiro trimestre do ano que vem.
A RTP está a promover o programa com uma única palavra - Guerra - seguida do nome do autor. A série é sobre a guerra do Ultramar, a guerra colonial ou a guerra de África?
Aquela foi a guerra, para uma geração. No subtítulo da série, pus guerra do ultramar/guerra colonial/guerra de libertação. Porque as pessoas a chamavam destas três maneiras. Os militares portugueses iam para o ultramar, que era a designação oficial; para a ONU, meios internacionais e para uma minoria de portugueses, mais politizados, havia colónias, e portanto a guerra era colonial; e uma terceira entidade que nela participava - os movimentos africanos - nunca lhe chamou nem uma coisa nem outra, mas sim, guerra de libertação. Essas pessoas estão todas aqui. As designações abrangem todos os protagonistas.
De que forma é que esse último lado - guineense, angolano e moçambicano - surge na série?
Através de africanos que fizeram parte dos movimentos que foram reconhecidos - Frelimo, PAIGC, UNITA, MPLA, UPA - e de outros nacionalistas que participaram na luta à sua maneira.
Dentro destes universos, há desertores do exército português; desertores dos movimentos africanos; pessoas que não fizeram a tropa, todo o tipo de variantes.
Quem fala de um e do outro lado? Generais? Soldados? Políticos?
Tudo isso: políticos, militares de várias patentes, colonos, religiosos, empresários, todos os que podiam dar testemunho foram ouvidos.
É muito extensa a lista dos que prestam testemunho. Houve muitas personalidades que se recusaram a falar?
Uma dezena talvez. O general Bettencourt Rodrigues, governador da Guiné na altura do 25 de Abril. Tive muita pena. [O general] Kaúlza de Arriaga [comandante militar em Moçambique, onde lançou a célebre operação Nó Górdio] disse que não, disse que sim, depois definitivamente que não, mas acaba por estar presente através de uma entrevista que adquirimos a uma produtora [a Duvídeo]. [O general] Soares Carneiro disse que sim, mas depois disse que não. Também um responsável dos serviços de informação em Moçambique e Gentil Viana disseram que não.
A série baseia-se mais nas imagens do tempo ou em entrevistas feitas hoje?
O esteio são imagens dos arquivos da RTP, dos Audiovisuais do Exército, Força Aérea e Marinha e de inúmeros documentos particulares. Há, depois, cerca de 200 entrevistas gravadas e à volta de 150 não gravadas correspondentes a conversas que mantive.
E há também as idas ao terreno?
Esse é um outro pilar do trabalho: reportagens em lugares da guerra que me pareceram particularmente simbólicos e aos quais levei militares portugueses que pus frente a frente com combatentes do outro lado.
Um exemplo?
Um encontro, que julgo inédito, entre quatro militares do batalhão 96, que participaram na operação Viriato [tomada de Nambuangongo] e elementos da UPA, que se encontravam lá.
Militares que vão daqui para Luanda e dali partem para Nambuango, para quem tudo é novo e que 40 e tal anos depois ainda vivem desse imaginário - 3 alferes, um furriel e o capelão do batalhão - encontraram-se com dois dos combatentes da UPA com quem se cruzaram e de quem tinham a imagem do desconhecido.
O que é que disseram uns aos outros, quando se viram?
Eles levavam a mente povoada ainda de mitos. Um português diz a certa altura aos da UPA: "Aquele Maneca Paka [um dos comandantes locais do movimento dirigido por Holden Roberto] não era canibal?" Resposta: "Não, não. O comandante não era homem que comesse vida humana, não senhor."
Um dos quatro era o capelão. Fez toda a operação até Nambuangongo sempre acompanhado de uma imagem da Senhora de Fátima, que lhe tinha sido oferecida pelo bispo de Leiria. Agora, quando regressou levou de novo a imagem consigo.
O que representa este trabalho na vida de um profissional com 32 anos de televisão?
Nunca fiz nada tão ambicioso neste registo. Tem um desafio suplementar a grandes reportagens: aqui tem que se reconstituir a história em função daquilo que existe. Esta história não foi contada ainda. Acho que, considerando os portugueses de diversos estratos sociais, até geracionais, que são tocados de uma forma directa ou indirecta por ela, mais os que estavam lá no 25 de Abril, este tema é, provavelmente, um dos que tocam maior número de pessoas. O grau de conhecimento sobre o conflito, contudo, não é proporcional. Muita gente sabe alguma coisa mas muito limitada ao espaço em que esteve lá.
A série procura contar tudo o que eu acho que é essencial do que está adquirido, mais os fenómenos que enquadram o conflito. Depois, acrescento-lhe as novidade possíveis.
Quais?
A principal, é o podermos olhar para isto de uma forma conjunta. Não vai ser primeiro um episódio sobre Angola, depois outro sobre a Guiné, um terceiro sobre Moçambique. Tirando os quatro primeiros episódios, que são dedicados a Angola, é tudo contado de forma integrada e em simultâneo.
Outras novidades?
Aquilo que as pessoas dizem. Grande parte não foram ouvidas. Os que participaram nos massacres, por exemplo, contam pela primeira vez o que fizeram, como fizeram, porque fizeram.
Na série há sempre pessoas que estão a contar o que não se sabia. Depois, há os filmes. Muitos não são inéditos mas foram postos no "ar" descontextualizados. Ao serem colocados agora no sítio devido, ganham outro significado, passando a dizer coisas novas. O mesmo quanto ao som.
Dois exemplos. Partida de um contingente: havia as imagens da partida mas não existia o som. Pesquisei no arquivo da RDP, encontrei a reportagem daquele mesmo dia na Emissora Nacional e sincronizei o som com a imagem. Passou a haver um documento que não existia. Segundo exemplo: havia as imagens do governador-geral Rebocho Vaz a falar aos fazendeiros e empregados que regressavam às suas terras. O discurso só com imagem significava pouco. Sincronizado com o som da EN, passou a ser um documento que considero antológico, pelo tipo de discurso que Rebocho Vaz vai produzindo: "Quem faz o mal merece castigo... Vocês agora voltaram, vão para as vossas lavras... Portugal vai ficar aqui mais 10, 100, 500 anos."
Depois, temos casos, temas, situações, aspectos novos: sobre o massacre em Mueda, em que tenho as duas partes a falar; sobre a Baixa do Cassange; sobre a UNITA, na segunda série.
A série foi terminada e vai ser exibida com o autor já sem vínculos laborais à RTP. Ela vai constituir um adeus ao jornalismo televisivo?
Não faço ideia. Não prevejo o futuro. Mas para mim não é uma despedida.
O que foi aprofundar um momento da história tão mal conhecido?
Aquilo que era feito antes do 25 de Abril era pura propaganda. O que se tem feito depois não será propaganda, mas tende a partir de pressupostos de que tudo o que está de um lado está bem e tudo o que está do outro é no mínimo obscuro. As coisas não são assim. A forma como se conta branqueou muitas vezes a realidade. Há coisas terríveis dos movimentos e há coisas terríveis feitas pelos portugueses. Também não tinha ideia de que houvesse tantos desertores de um lado e do outro. Impressionou-me também o papel dos portugueses. Independentemente de juízos de valor histórico, há que considerar o que é conduzir uma guerra. Manter três frentes a esta distância não deixa de ser uma grande empresa.
A forma como tem sido contado aquele período é bastante apaixonada. Estes episódios desmontam-no um bocado. Talvez porque haverá já distância.
A série vai gerar polémica?
Não sei. Vamos ver. Tudo aquilo que é contado é suportado pelas pessoas que falam. Admito que sim, considerando que o tema é muito sensível. Não é ainda uma questão histórica no sentido em que muitos protagonistas ainda estão vivos. [Aquele período] Já está com um pé na história, mas tem ainda um pé na política, pois alguns encontram-se ainda no poder.
Há, no meio profissional, quem critique os 10 anos que a série demorou a ser feita.
A pergunta está mal fundamentada. Se falarmos em tempo real dedicado à série falamos de seis anos.
Falemos de seis anos, então. Seis anos não são muito tempo para fazer uma série de televisão?
Não acho muito tempo. Aliás, não sei se é muito ou não: nunca ninguém fez nada igual. Não tenho termo de comparação, por isso. Eu até acho que se calhar precisava de mais tempo. Isto estava à espera de ser feito há muitos anos. O projecto foi-se alongando ao longo do tempo. Ninguém me deu a oportunidade, fui eu que conquistei o tempo necessário para fazer a série. E ele foi aceite porque se aperceberam que faz sentido. Se me disserem que numa estação com tradições e práticas diferentes com equipas vocacionadas para este tipo de trabalho, como na BBC, admito que a produção fosse mais rápida. Entre nós está muito instituída esta coisa do fastprogramm, é tudo muito rápido. Diz-se: "Vamos tratar da guerra colonial?" Convida-se o general, um historiador, e está feito. Não vejo é candidatos a fazerem coisas destas. Quem é que fez mais depressa? A acusação não é séria. Vejam primeiro, e pronunciem-se depois.
Quantas pessoas trabalharam na série?
O projecto é muito pessoal. Editorialmente fui apenas eu. Mas evidentemente que contei com o trabalho de um conjunto de pessoas da área técnica: operadores de imagem, pós-produção vídeo e de som, grafismo. É de justiça deixar-lhes aqui uma palavra de muito apreço pelo empenhamento com que trabalharam no projecto. Contei também com a colaboração, na área militar, do coronel Matos Gomes, na altura da recolha de material e quando procurei organizar uma visão das fases do conflito e caracterizar algumas operações militares que destacarei na série.
Há sempre, neste tipo de trabalho, algo que nos toca mais. Qual foi, agora?
Uma história que não está gravada. Entrevistei um homem da UPA, que participou em muitos episódios cruéis logo no início da luta. Era já idoso. No fim da entrevista disse, emocionado: "Já vou durar pouco, mas gostava muito que os portugueses voltassem a dar-se bem com Angola." Imagens que marcam há muitas. Destaco o encontro dos portugueses com os homens da UPA, pelo que significou. Os filmes estão cheios de coisas dessas. Imagens diferentes vão tocar uma grande variedade de espectadores.
A guerra, afinal, foi do ultramar, colonial ou de independência, para o autor?
Procuro que sejam as pessoas a contar a história e procuro manter a distância. Tenho uma opinião, mas na série não defendo uma tese. O que eu penso há-de aparecer porque é praticamente inevitável, mas a minha atitude não é a de alguém que está a querer construir uma tese.

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