Blackwater: firma de segurança ou exército privado?

Um tiroteio em Bagdad levou os EUA a analisarem a actuação de uma das empresas que mais beneficiaram com a privatização da guerra

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empresas privadas terão no Iraque 180 mil funcionários, segundo estimativas avançadas pelo LATimes
a Excesso de testosterona, óculos espelhados, armas até aos dentes, sempre prontas a serem disparadas da janela de um veículo todo-o-terreno a rodar a mais de 100 quilómetros à hora em sentido contrário ao do trânsito, pelo centro de Bagdad. Verdadeiros "cowboys do deserto": é assim que o mundo passou a ver a empresa de segurança privada Blackwater, que está sob as luzes da ribalta por causa do tiroteio em que se envolveu em Bagdad, a 16 de Setembro, e que levou o Governo iraquiano a manifestar a intenção de a expulsar do país.
Convergem todas as suspeitas sobre a empresa que obteve lucrativos contratos com a Casa Branca, tem fortes ligações à Administração Bush e montou uma força que dizem ser o mais poderoso exército privado do mundo. A imprensa não tem pintado um retrato positivo. Na semana passada, os jornais The Washington Post e The New York Times divulgaram o conteúdo do inquérito preliminar feito pela embaixada dos EUA no dia dos incidentes - que terão morto entre oito e 20 pessoas, civis, incluindo uma mãe com o bebé que trazia ao colo.
A empresa com sede na Carolina do Norte tem por ambição ser para o exército norte-americano aquilo que a Fed-Ex foi para os serviços postais dos EUA: fazer tudo o que os militares fazem, mas melhor, conquistando contratos para se substituir ao Estado, fazendo a guerra em outsourcing.
"Temos uma visão de muito longo prazo. Vemo-nos a ajudar o Departamento de Defesa a tornar-se uma organização mais rápida e diligente", disse o fundador da empresa, o ex-militar das forças especiais Erik Prince, numa rara entrevista (por e-mail) ao jornal The Virginian-Pilot. Terça-feira Prince fez uma aparição pública, no Congresso, para responder às perguntas de uma comissão que está a investigar a sua acção no Iraque.
Nos mais de 2800 hectares que a sua empresa ocupa, em Moyock, junto a uma zona pantanosa (com águas negras, daí o nome), treina anualmente 40.000 militares e outras forças de várias agências governamentais.
Há uma zona com uma cidade miniatura a fingir, pistas de aviação, um lago artificial para simular situações no mar... O primeiro contrato com o Governo para treinar militares seguiu-se ao ataque no Iémen ao USS Cole, pela Al-Qaeda, em 2000. "Foi Bin Laden que fez da Blackwater aquilo que ela é hoje", disse ao Virginian-Pilot Al Clark, outro antigo militar das forças especiais e fundador da empresa, que entretanto se desligou dela.
O negócio das empresas de segurança privada - que não gostam nada de se ver associadas ao termo "mercenários" ou "soldados da fortuna" - vale hoje 100.000 milhões de dólares anuais. A Blackwater não é o maior peixe neste mar - outras empresas, como a Aegis, Triple Canopy, DynCorp ou ArmorGroup, terão maior volume de negócios. Mas a Blackwater cresceu rapidamente, em lucros e notoriedade, e distingue-se pela sua proximidade com o poder, em especial com a Administração Bush.
Diversificar negócios
Um dos advogados da empresa é Ken Starr, que liderou o processo de impeachment contra Bill Clinton. E na direcção da empresa estão homens como Cofer Black, que trabalhou durante 30 anos para a CIA e era responsável pelo contraterrorismo na altura dos ataques do 11 de Setembro. Agora está ligado a uma nova empresa da Blackwater, a Total Intelligence Solutions, que pretende crescer num nicho da privatização dos serviços de segurança: oferecer outsourcing de serviços de espionagem, diz Jeremy Scahill, jornalista e autor do livro Blackwater: the rise of the world"s most powerful mercenary army.
A diversificação dos negócios é um ponto forte da Blackwater: foram o primeiro apoio a chegar a Nova Orleães em 2005, depois do furacão Katrina, e foram pagos a peso de ouro - mais de 900 dólares por dia e por homem - para garantir a segurança e prestar apoio ao salvamento de pessoas encurraladas pelas águas.
E agora estão de olho num outro potencial nicho de mercado: as missões humanitárias. Têm oferecido os seus serviços à ONU e outras organizações, publicitando as suas capacidades para transportar pessoal, equipamento e mantimentos para qualquer parte do mundo. Um contrato para intervir no Sudão é o seu objectivo.
Sabe-se muito pouco sobre o fundador da Blackwater: é raríssimo ver este antigo soldado membro das forças especiais da Marinha em público, e não dá entrevistas. Tem apenas 38 anos, e um cabelo louro muito curto na nuca, num corte que ajuda a que não tenha perdido o aspecto de militar. É herdeiro de uma fortuna do Michigan, profundamente conservador, e tem contribuído para várias organizações de cariz religioso e fundamentalista, e para as campanhas de vários políticos, como George W. Bush.
Prince teve uma educação religiosa, baseada numa interpretação literal das Escrituras. O seu pai fundou uma empresa que produzia peças para automóveis, e fez fortuna com a invenção de inovações que hoje estão em todo o lado, como a abertura de garagem programável, o conjunto bússola/termómetro para carro.
Depois do liceu, Prince entrou para a academia naval: "Não gostei da academia, mas adorei a Marinha", disse, numa raríssima entrevista por e-mail, concedida ao jornal The Virginian-Pilot. Por isso, saiu, tirou um curso universitário e alistou-se na Marinha. Acabou nos seals, uma força de elite que o levou para sítios como o Haiti, o Médio Oriente e a Bósnia.
Em 1995, deixou de ser militar para responder a uma crise familiar: a sua mulher tinha cancro e o seu pai morreu. Mas em vez de continuar no mesmo ramo que o pai, vendeu a empresa e dedicou-se a um novo empreendimento: a Blackwater.
"Percebi que era muito difícil para as unidades militares terem o treino de ponta necessário para garantir o sucesso", explica Prince nessa rara entrevista. Foi assim que nasceu a ideia de fundar a Blackwater, em 1997, juntamente com outros ex-militares das forças especiais, e essa continua a ser uma parte importante dos seus negócios.
O pai de Erik Prince financiou várias organizações e políticos conservadores. Erik seguiu-lhe as pisadas: foi estagiário na Casa Branca, nos tempos de George H. Bush, e tem contribuído para as campanhas de vários políticos conservadores, incluindo as do Presidente George W. Bush. Na reeleição de 2004, os carros da Blackwater no Iraque até andavam com autocolantes de apoio a Bush. C.B.

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