O Ramadão

Também eu tenho de aprender a ser tolerante e compreender os que jejuam durante todo este mês

O nono mês do calendário islâmico é sempre registado pela recordação e vivência comunitária ou familiar de uma tradição marcada pela ênfase particular nas orações, na caridade, no jejum e nas reflexões ou contemplação daquilo que somos e das responsabilidades perante Deus e a Sua Criação. Este é o mês em que o Profeta sagrado dos muçulmanos - Muhammad - recebeu o Qur"an - a revelação divina. É, por isso mesmo, um mês carregado de simbolismos positivos e auspiciosos entre os crentes do islão.Pelas razões que precisam de ser ponderadas, a começar pelos próprios muçulmanos, o Ramadão passou a ser conotado apenas como o mês do jejum, talvez porque sendo a parte mais visível da prática comunitária, sobretudo em sociedades onde a secularização, o laicismo e o materialismo são mais marcantes, este tipo de comportamento religioso pareça um tanto exuberante, senão mesmo incivilizado. Por outro lado, estou também convencida, e isto é o que mais me preocupa, de que os próprios muçulmanos, aculturados na fé pelas práticas e por herança do saber já feito, e não necessariamente pelo conhecimento progressivo da história e do pensamento, da teologia ou da filosofia, sigam passivamente a tradição do jejum e das orações sem questionar mais sobre o significado e a importância do Ramadão na vida do muçulmano.
Todos os anos, a história repete-se. Questionam-se uns aos outros se farão o Ramadão. Concretamente, perguntam se vamos jejuar. Este ano tenho um vendedor de jornais muçulmano que me pergunta como vai o Ramadão... Quer dizer, "como vai o teu jejum?" Na minha comunidade discutiu-se se algumas famílias poderiam ou não ir de férias. E tudo se passa como se numa realidade religiosa, que tem tanto de diverso como de plural, e onde as diferenças são sinais (ayats) das formas como Deus fala a cada um de nós, a multiplicidade de interpretações, todas legítimas e genuínas, tivesse que se comprimir e deixar reduzir a uma mecânica de práticas monolíticas.
Pessoalmente, faço parte de uma comunidade de interpretação de raiz étnica indiana (sou uma Ismaili khoja). Trago como prática cultural o jejum uma vez por mês, todos os meses. Como Ismailis herdámos esta do período pré-islâmico, dos judeus e cristãos, e como Khoja, ela perdurou pelo contacto com os hindus e outras religiões orientais. No Ramadão há Ismailis que jejuam durante todos os dias do mês, outros que jejuam em apenas parte deles, e outros que não jejuam de todo, como é o meu caso em concreto. Não é invulgar por isso mesmo que seja frequentemente entendida pelos intolerantes como sendo muçulmana de segunda categoria... ou talvez até uma espécie de herege. Mas não é esta questão em particular que me preocupa. Já encontrei gente boa noutras comunidades religiosas que padece de males semelhantes.
O que me preocupa é a mecânica da continuidade de práticas religiosas sem que se questione racionalmente sobre as práticas associadas a uma fé. Há dias ouvi um intelectual muçulmano aconselhar um grupo de estudiosos sobre estas questões e dizia ele: "Trabalhem no sentido do incremento da vossa fé. Atenção, que eu não digo "incremento da religião", porque fé e religião são coisas diferentes; muita religião provoca ruído desnecessário; a fé tem que ver com a resposta que procuramos para o chamamento da alma, do intelecto, para o conhecimento e a sabedoria." Estas palavras ficaram comigo para reflexão sobre o que hoje se vive no mundo dos muçulmanos e sobre as intolerâncias que os próprios muçulmanos sofrem dentro da sua própria casa.
Também eu tenho de aprender a ser tolerante e compreender os que jejuam durante todo este mês e que, queixosa e miseravelmente, me dizem o quão difícil é viver no mundo como o nosso e ter de seguir horários de trabalho que pouco se coadunam com esta prática do jejum tradicional. Custa-me entender, mas respeito essa diferença e estimo o sentido de sacrifício daqueles que conseguem. Só tenho pena de que a vivência destes dias se resuma a uma mecânica de práticas e a um esquecimento total de tudo o que de auspicioso e inspirador este mês poderia representar para o crente muçulmano.
Quando lia um relato de uma muçulmana Ismaili sobre a forma como o Ramadão é vivido no Dubai, pensei que encontro o mesmo fascínio, das luzes, dos aromas, dos gestos, do convívio familiar ou entre amigos, a mesma aura de generosidade, de caridade e orações, aqui mesmo na altura do Natal. E, da mesma forma como ouço dizer que gostaríamos "que o Natal fosse todos os dias", apetece dizer que gostaria que o Ramadão também fosse todos os dias. Mas tal como todas as tradições, que sofrem renovados contornos consoante os contextos e os tempos, uma comunidade precisa de recordar e celebrar, nos seus momentos concretos, a importância dos valores de fundação de uma fé ou de uma cultura religiosa.
Sendo o mês em que o profeta Muhammad (que a paz esteja com ele) recebeu a revelação divina, o Ramadão vem recordar, acima de tudo, que o Alcorão serviu de mote de inspiração para os crentes mas que o milagre divino não se encerra naquele momento histórico; antes, a revelação deve ser vista como um fenómeno constante e contínuo nas nossas vidas e na capacidade que podemos ter na transformação positiva e construtiva de um mundo mais justo, mais equilibrado e mais fraterno. Importa pois, a todos os muçulmanos, ao mesmo tempo que cumprem os rituais de fé, como as orações e o jejum, reflectir sobre o seu papel no mundo e na história. Importa saber se a sua fé se viu reforçada pelo conhecimento e pela busca racional e não apenas por aceitação de dogmas e doutrinas. Importa acima de tudo conhecer mais para se deixar conhecer melhor; importa repensar nas mais-valias que oferece aos seus semelhantes, em casa, na comunidade, na sociedade como um todo. Viver apenas celebrando o passado ou a imagem que dele possamos ter não nos leva necessariamente mais longe ou mais alto; mas viver hoje inspirando-nos na ética de um passado religioso poderá, inshallah, conduzir-nos à construção de uma civilização que pode deixar marcas positivas na história da humanidade. Penso que seja esse o desafio e a responsabilidade que esta religião de raiz abraâmica nos faz recordar sempre que celebramos o Ramadão. Investigadora em assuntos islâmicos

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