Torne-se perito

Irão A misteriosa ausência de gays

A frase do Presidente iraniano na Universidade
de Columbia foi recebida com gargalhadas. "Nós não temos homossexuais, como no vosso país. Não temos esse fenómeno", disse Ahmadinejad. Por outro lado,
o Irão é o segundo país do mundo onde se fazem
mais operações de mudança de sexo

a Durante os dois anos em que fez o serviço militar no Irão, Saeed viveu "numa agonia". Diziam-lhe para falar com voz mais grossa, para ter um comportamento mais masculino. "Para eles deixarem de fazer troça de mim, tentei parecer-me como um combatente do Hezbollah, deixando crescer a barba e esforçando-me a dobrar nos treinos", contou à jornalista Caroline Mangez, que em 2005 publicou no diário britânico The Independent uma reportagem sobre os transexuais iranianos. A vida de Saeed começou a mudar aos 19 anos, quando ainda estava na tropa e se apaixonou por Ali, de 21 anos. Foi "no dia em que Ali lutou com três soldados que estavam a tentar violar-me". Num país em que a homossexualidade é proibida e punida com a morte, Ali convenceu Saeed a mudar de sexo - as operações são legais, e o Irão é mesmo, a seguir à Tailândia, o segundo país do mundo com mais operações de mudança de sexo. Hoje, conta Mangez, Saeed chama-se Setareh, casou com Ali (aos pais deste os dois disseram que Setareh é irmã de Saeed, que partiu numa longa viagem) e usa sempre o chador a cobrir-lhe os cabelos. "Ali insiste que o use, e gosta que eu me dedique ao trabalho da casa", explica.
São casos como o de Saeed que encorajam o Presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, a fazer a extraordinária afirmação que fez na semana passada na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, em resposta a uma questão sobre a repressão contra homossexuais: "Nós não temos homossexuais, como no vosso país. Não temos esse fenómeno. Não sei quem lhe disse isso."
A frase de Ahmadinejad provocou imediatamente um coro de protestos das associações de gays iranianos no exílio. "Quem sou eu? Quem sou eu, se não há gays no Irão?", perguntou Arsham Parsi, director executivo da Iranian Queer Organization, baseada em Toronto. "Não há gays no Irão, senhor Presidente? Isso é novidade para mim...", escreveu no Guardian o jornalista David Shariatmadari, de origem britânica e iraniana. "Vamos pôr de lado por um minuto a tradição secular de poesia homoerótica, a bissexualidade de sucessivos reis iranianos, e a cena disco que começava a florescer no momento em que a revolução de 1979 acabou com a festa. Se Ahmadinejad diz que não há gays no Irão, ou é estúpido ou mentiroso. Ele deve saber que eles existem, porque apoia as leis com que são perseguidos."
"Tentaram engatar-me"
Shariatmadari ironiza: "Sou apenas meio iraniano, e nasci no Reino Unido, por isso claro que a minha homossexualidade pode ser explicada pela contaminação dos genes ocidentais." Mas, no final do texto, desafia Ahmadinejad contando que esteve em Teerão no início do ano e que um homem se aproximou dele quando estava sentado num banco e lhe perguntou: "Não o conheço de algum sítio?" "Ofereceu-se para me guiar num passeio por Teerão, e fez insistentes referências ao Park-e Laleh, o principal local de engate da cidade. Desculpei-me e fui para a minha reunião. E então, tentaram engatar-me, ou foi apenas imaginação minha, senhor Ahmadinejad?"
Mas quem for apanhado no Park-e Laleh ou em qualquer outro local numa relação homossexual corre sérios riscos - aliás, riscos idênticos aos que corre quem for apanhado em qualquer tipo de relação sexual fora do casamento heterossexual. O sexo fora do casamento - consensual e praticado por adultos - é ilegal no Irão. As penas para relações homossexuais entre homens vão de várias dezenas de chicotadas à morte, mas para se provar que o "crime" existiu é necessário que o réu confesse quatro vezes ou que haja o testemunho de "quatro homens justos". No caso das mulheres, a primeira pena é de 100 chicotadas, e se houver repetição à quarta vez a condenação é à morte, sendo a pena aplicável tanto a muçulmanos como a não muçulmanos.
É para escapar a isto que muitos homossexuais iranianos se refugiam no único recurso legal: a mudança de sexo. Os dados oficiais indicam que existem entre 15 mil e 20 mil transexuais no Irão, mas números não oficiais apontam para 150 mil.
"O número de operações de mudanças de sexo é, sem dúvida, mais elevado do que no resto do mundo, porque é a única forma de um homossexual viver livremente no Irão sem medo de ser perseguido", confirma, numa conversa com o P2 por e-mail, Kiarash Vasigh, da Homan (Iranian Gay, Lesbian, Bisexual and Transgender Organization) de Los Angeles. "Quando digo "livre", quer dizer que serão tolerados pelo Governo, mas, mais importante do que isso, pela sociedade iraniana e até pela própria família. Outra razão para as operações de mudança de sexo serem tão comuns tem a ver com o facto de serem subsidiadas pelo Governo e de existir um decreto religioso que as autoriza para pessoas que tenham "desvios sexuais"!"
A fatwa de Khomeini
O que é surpreendente numa República Islâmica é que os mullahs, tão rigorosos em tudo o que diz respeito ao sexo, aprovem - e subsidiem - operações de mudança de sexo. A base é um célebre decreto religioso (fatwa) do líder da revolução islâmica, o falecido ayatollah Ruhollah Khomeini. A história foi contada no Guardian em 2005 por Robert Tait: na origem da surpreendente fatwa está Maryam Molkara, que se sentia "uma mulher presa num corpo de homem".
Há 24 anos, Molkara, hoje com 57, desesperada depois de anos de tentativas de chegar a Khomeini, conseguiu entrar no altamente protegido quartel-general do líder em Teerão, levando consigo uma cópia do Corão e, em sinal de pedido de protecção, os sapatos pendurados ao pescoço. Espancada pelos guardas, Molkara, que na altura tinha barba e todo o aspecto de um homem, gritava desesperada: "Sou uma mulher, sou uma mulher." Acabou por comover o filho de Khomeini, que a levou ao pai. Quando saiu, levava uma autorização para uma operação de mudança de sexo - a célebre fatwa.
Porque é que Khomeini aceitou a transexualidade? A principal razão, explica Kiarash Vasigh, é que "não havia nada no Corão que a proibisse". "Khomeini deduziu que, como há uma menção directa à homossexualidade no Corão, proibindo o acto, e como não há referência à transexualidade, então a operação podia realizar-se." Hoje há mullahs, como o hojatoleslam Kariminia, que há dois anos defendia em declarações à BBC que "o direito dos transexuais a mudar de sexo é um direito humano". Kariminia estuda as implicações dessa mudança do ponto de vista da lei islâmica, tentando responder a questões como "deve um marido ou uma mulher pedir a autorização daquele com quem está casado antes de mudar de sexo" ou "o que acontece ao dote da mulher, se ela se torna um homem".
Para muitos foi uma libertação. No já citado artigo do Guardian, Robert Tait conta como, naquela altura (2005), todas as terças e quartas-feiras de manhã homens e mulheres jovens acorriam à clínica do doutor Bahram Mir-Jalali, em Teerão, para se prepararem para a mudança de sexo. "Muitos estão desesperados, vendo a operação como uma fuga de uma identidade sexual confusa que levou à rejeição por parte dos pais e à perseguição pela polícia e os vigilantes religiosos." Vítimas da violência dos pais, expulsos de casa, a viver na rua, muitos têm um historial de repetidas tentativas de suicídio.
Processo doloroso
O médico, o mais famoso nesta área na República Islâmica, conta que nos 12 anos anteriores realizou 320 operações de mudança de sexo - se trabalhasse num país europeu, afirma, teria, no mesmo período, feito menos de 40. O processo é complexo e doloroso, sendo necessário usar pedaços do intestino para formar os órgãos sexuais femininos. Na reportagem de Caroline Mangez, o agente imobiliário Milad Kajouhinejad, de trinta e poucos anos, barba, bigode e peito cheio de pêlos, conta como tinha visto na Internet que quatro operações bastariam para o transformar num homem, mas a realidade foi diferente: 23 operações em três anos, extremamente dolorosas. Mas, para Milad, mesmo o ter-se sentido às portas da morte valeu a pena. Hoje ninguém diria que alguma vez foi uma mulher, reconciliou-se com a família (que em determinada altura o tinha expulso de casa), mudou de documentos e apagou todos os traços da sua vida anterior. Tudo financiado pelo Estado. "Se fores uma mulher, basta começar a injectar testosterona para obter uma autorização para ser operada", explica Amin, amigo de Milad e, também ele transexual.
Há, no entanto, muitos gays no Irão que não querem sujeitar-se a uma operação para mudar de sexo, mesmo que isso lhes seja apresentado como um seguro de vida. A esses não restam muitas alternativas, explica Kiarash Vasigh ao P2: "A vida gay no Irão é 100 por cento clandestina. Tal como a conhecemos no Ocidente existe apenas nas grandes cidades e entre pessoas que tiveram contacto com a cultura ocidental via satélite ou Internet."
Aquilo a que Vasigh chama a "versão local" da vida gay "é limitada a sexo entre membros do mesmo sexo, ao mesmo tempo que vivem vidas heterossexuais "normais"". Há alguns locais de encontro "frequentados por quem procura sexo", explica. Mas "a ideia de estar numa relação a longo prazo com outro homem é muito pouco comum e só acontece em casos raros".

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