Torne-se perito

Luciano Pavarotti, o tenor genial que foi também uma superestrela pop

Celebrado pelos pares e fenómeno de popularidade, Pavarotti foi uma das mais mediáticas personalidades do século XX. Morreu ontem na sua cidade, Modena, aos 71 anos

a O seu plano era regressar aos palcos, concluir a digressão de despedida que interrompera em Julho de 2006, editar um álbum de canções sacras e regressar aos seus Pavarotti & Friends. Depois, sim, poderia retirar-se definitivamente para uma vida descansada entre a família e a cozinha italiana, de que era um dos mais famosos cultores. Não o conseguiu. Luciano Pavarotti, uma lenda da ópera do século XX, o tenor cuja voz e corpo se tornaram para milhões sinónimo do bel canto, não sobreviveu ao cancro no pâncreas diagnosticado há um ano. Morreu ontem de madrugada, aos 71 anos, na sua villa nas proximidades de Modena, a cidade italiana onde nasceu. "Era um dos melhores cantores do nosso tempo", lê-se num comunicado da Royal Opera House, sediada em Covent Garden, Londres. Placido Domingo e José Carreras, com quem Pavarotti formou o famoso Os Três Tenores, recordaram o amigo, à BBC News, como um cantor com uma "voz divina", como "um dos mais importantes tenores de sempre". As suas palavras pareceram ecoar nas do realizador italiano Franco Zefirelli, quando este resumiu: "Havia tenores e, depois, havia Pavarotti".
Ópera de Viena de luto
Sendo que a unanimidade em torno do seu virtuosismo é real e transversal, não é apenas a ele que todos, da direcção da Royal Opera House a Nicolas Sarkozy, o Presidente francês, da Ópera de Viena, que ergueu uma bandeira negra em luto, aos cidadãos anónimos reunidos na Catedral de Modena, prestam homenagem. Luciano Pavarotti foi uma estrela global, alguém que deu ao canto lírico uma exposição inaudita na segunda metade do século XX. Para muitos, no universo da música clássica, esta era a única imagem que conheciam: barba farta, corpo imenso, movendo-se pesadamente, e o icónico guardanapo branco enrolado na mão.
Pavarotti, o tenor que, em 1972, obrigou a cortina da New York Metropolitan Opera a subir 17 vezes, culpa dos aplausos ininterruptos que o público lhe foi dirigindo em La Fille du Regiment, de Donizetti, era alguém que não punha quaisquer reticências em se alargar a universos exteriores à música erudita. Seguia a famosa máxima de Duke Ellington: "Só existem dois tipos de música: boa música e má música".
Best-seller
Nos estúdios da CNN, num Larry King Live de Setembro de 2003, elegeu os seus compositores favoritos: Mozart, Beethoven e Verdi. Acabava de editar o seu último álbum a solo, Alice, dedicado à sua última filha, nascida em Janeiro desse ano, onde a sua voz de tenor se encaixava em canções de formato pop mainstream. Nesse mesmo programa, confessaria o desejo de que Paul McCartney cumprisse a prometida colaboração num dos seus Pavarotti & Friends, a série de discos e concertos que, editados desde os anos 90, o reuniram a músicos como Eric Clapton, Mariah Carey, Tom Jones ou Bryan Adams.
Alvo dos papparazzi ao lado dos grandes amigos Lady Di ou Elton John, com aquela bonomia que nos levava a pensar que se sentiria mais à vontade discutindo as maravilhas da pasta italiana ou os feitos futebolísticos da sua Juventus que dissertando sobre a sua carreira, Luciano Pavarotti, "um dos mais importantes tenores de sempre", era uma estrela pop e um homem do povo.
No final dos anos 80, apenas Madonna e Elton John vendiam mais discos que ele. "O tempo gasto a assinar autógrafos nunca é suficiente", dizia nessa altura numa entrevista à revista americana Newsweek. "Quero ser famoso em todo o lado", declarava, entusiasmado, na mesma reportagem.
Luciano Pavarotti nasceu em Modena a 12 de Outubro de 1935, no seio de uma família operária. Filho de Fernando Pavarotti, um padeiro, e de Adele Venturi, que trabalhava numa tabaqueira, apontou sempre o pai, um cantor que nunca o chegou a ser, como a sua primeira referência. Foi ao som dos discos de Giovanni Martinelli ou de Enrico Caruso - de quem viria décadas depois a ser considerado sucessor - que primeiro se revelou a vocação que, inicialmente, colocou em segundo plano. O futebol era a sua paixão e, na juventude, Pavarotti chegou a jogar como guarda-redes do Modena.
Ópera em vez de futebol
Em 1963, quando o astro Giuseppe di Stefano abandona o elenco de La Bohème, em cena no Covent Garden, Luciano, o seu novato substituto, já tinha deixado o futebol, já deixara de ser professor do ensino primário e vendedor de seguros. Tinha-se decidido a cumprir a mesma vocação que o pai não conseguira seguir e os entusiásticos elogios ao seu Rodolfo mostraram que estava na direcção certa.
Na década de 70, as suas interpretações de árias de Verdi ou Donizetti, em disco e em palco, bem como a sua transformação em figura televisiva, tornaram-no uma das grandes celebridades do canto lírico. Porém, seria em 1990 que a sua popularidade extravasaria definitivamente as fronteiras da música erudita. Nesse ano, os Três Tenores deram o seu primeiro recital antes da final do Campeonato do Mundo de Futebol, realizado em Itália, e transformaram-se num fenómeno de popularidade.
In Concert, o álbum daí resultante, tornar-se-ia o disco de música clássica mais vendido de sempre. Pavarotti prosseguiu década fora num crescendo de popularidade.
Juntou 150 mil pessoas para o ver no Hyde Park de Londres, 500 mil no Central Park em Nova Iorque, 300 mil junto à Torre Eiffel em Paris. Iniciou a série Pavarotti & Friends e revelou a sua face de benemérito, oferecendo os lucros dos concertos de beneficência que organizava anualmente em Modena a instituições de apoio a crianças vítimas de conflitos mundo fora.
Nomeado mensageiro da Paz pela ONU, em 1998, foi presença regular na imprensa tablóide, dois anos antes, pelo fim do casamento de 35 anos com a sua primeira mulher, Adua. Juntou-se a Nicoletta Mantovani, então com 26 anos, que foi a sua companheira até ao fim.
Há quem pense que a personalidade mediática de Pavarotti ultrapassou em muito a sua música. Mas não falta quem pense que essa avaliação é injusta. Basta recordar as palavras de James Levine, director musical da Ópera Metropolitana de Nova Iorque, quando confrontado com a sua morte: "O seu canto falava ao coração dos ouvintes, quer soubessem alguma coisa de ópera ou não".
Basta recordar as suas próprias palavras, num comunicado emitido dois dias antes de falecer, após ter sido a primeira personalidade distinguida pelo Estado italiano com um novo prémio de "excelência cultural". Agradeceu a "oportunidade de continuar a celebrar a magia de uma vida passada ao serviço da arte".

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