Torne-se perito

Ela é Bob Dylan E Richard Gere, Heath Ledger e Christian Bale também

Bob Dylan tem sete vidas em I"m Not There, e elas são interpretadas por Cate Blanchett, Richard Gere, Heath Ledger ou Christian Bale. Todd Haynes diz que quer fazer explodir
o mito em estilhaços. Espreitámos um dos filmes mais aguardados do festival de Veneza,
que hoje começa. Por Vasco Câmara, em Veneza

a Um dia inteiro a ver Cate Blanchett morrer em Montreal: entra no plateau, "acção", deita-se, morre, "corta", levanta-se, regressa ao camarim. E assim sucessivamente: entra no plateau, "acção", deita-se, morre, "corta", levanta-se, regressa ao camarim. Um dia em Montreal, Canadá, rodagem de I"m Not There, de Todd Haynes. O cenário: um "clube nocturno" e um ecrã em fundo onde passa um filme, a silhueta andrógina que entra, morre e se esgueira como fumo para dentro do camarim, rock star de óculos escuros, botins e fato justo, tentáculos negros a espernear no lugar de cabelos. Cate Blanchett chama-se Jude, mas não há dúvidas, ela é Bob Dylan: período a meio dos 60 em que violentou os fãs folk com a guitarra eléctrica e construiu uma persona de emoções íntimas encerradas dentro dos óculos escuros mas tumultuosa como porta-voz de uma geração - o período dos álbuns Bringing It All Back Home (1965) e Highway 61 Revisited (1965), o período da triunfal Like a Rolling Stone.
Quem viu a morte da rock star cheia de anfetaminas, e nos conta isso, é um jornalista dinamarquês, Thomas Berger, que teve acesso a um dia - 6 de Setembro de 2006 - da rodagem da biografia filmada de Dylan (dito assim é mais trivial do que a ambição do projecto...), que é um dos filmes mais aguardados no Festival de Veneza, que hoje começa.
Berger, que trabalha para a revista masculina Euroman, foi escolhido pela produção para passar um dia na rodagem porque não é fã de Dylan. Condição sine qua non, ao que parece, na escolha dos jornalistas. "Não só não sou fã, como detesto" - isto poderá fazer sentido, não é nada trivial a ambição do projecto de Haynes.
E o que é que Berger nos pode dizer mais sobre o dia em que viu Dylan morrer? Que não pôde falar com ninguém, Blanchett estava para lá de uma cortina de ferro de agentes, Haynes tinha um filme entre mãos para fazer. Mas... "Era incrível, Cate Blanchett estava igual a Dylan, naquela fase andrógina. Acho que aquela morte é, no filme, Dylan a sonhar com a sua própria morte, a ter uma visão. Este filme vai ser muito arty, a narrativa não é o seu forte, é construído como uma série de interpretações e impressões visuais da vida e da obra de Dylan, não é um biopic [filme biográfico] convencional".
Como poderia sê-lo, um filme cujo título começou por se chamar I"m Not There: Suppositions on a Film Concerning Dylan?
Os vários rostos
Mesmo na véspera de Berger ter estado em Montreal, Richard Gere andou pelo plateau montado a cavalo, "no meio do nada". Também faz de Bob Dylan (chama-se Billy). Período: final dos anos 60, Dylan recolhido do mundo depois de um acidente de moto, iniciando outra metamorfose, redescobrindo a country music, o western e as raízes da música tradicional americana, gravando The Basement Tapes (registado em 1967, editado em 1975) com os The Band em Woodstock. Nas sessões que deram origem a esse disco, foi tocada I"m Not There, canção que ficou de fora do álbum e que se tornou mítica, nunca tendo sido tocada depois disso, nem editada oficialmente, podendo só ser ouvida em bootlegs. Esse é o período também de John Wesley Harding (1967) e Pat Garrett and Billy the Kid (1973, banda sonora do filme de Sam Peckinpah).
É para continuar, há outros Dylan num filme que, intenções do realizador, quer "fazer explodir qualquer preconceito sobre Dylan em milhares de estilhaços". Concretamente sete, num filme cuja construção é inspirada na forma como Dylan se reinventou, recriou, ao longo da vida pública. O título, uma citação da canção de Dylan, explicita o programa de Haynes de filmar a multiplicidade e ilustrar o "eu sou um outro" (o homem não consegue evitá-lo; é licenciado em Semiótica, pela Brown University).
Vamos a eles, então, aos outros "eus" de Bob Dylan.
Christian Bale chama-se Jack e irrompe da cena folk de protesto da Greenwich Village do início dos anos 60, os tempos de The Freewheelin" Bob Dylan (1963) e The Times They Are A-Changin" (1964) - período em que, de braço dado com Joan Baez e afastando-se de Joan Baez (que se chama Alice, e é interpretada por Julianne Moore), abraça e repudia as expectativas do seu público, ácido espectáculo de máscaras de que nunca abdicou na sua carreira e que para os fãs foram outros tantos cortes traumáticos.
Por exemplo, quando pareceu repudiar as canções de protesto e virou-se para a crónica das suas relações amorosas, jogo de amargura e de crueldade com as mulheres e "traição" para os fãs de um "cantor de intervenção" - é Heath Ledger que faz este Dylan, chama-se Robbie, é o Dylan de Another Side of Bob Dylan (1964).
Mais Christian Bale no filme, e outro Dylan (o Pastor John), quando Robert Zimmerman - nome com que Bob nasceu, em Hibbing, Minnesota - mudou outra vez de rota, trocou a folk pelo gospel e se converteu ao cristianismo (entre 1979 e 1981, Slow Train Coming, Saved e Shot of Love).
Mais rostos de Dylan, e a "cena original" para as futuras metamorfoses: Arthur (o actor Ben Wishaw), narrador do filme, representa Dylan sob influência do poeta Arthur Rimbaud; Woody (Marcus Carl Franklin), um miúdo de 11 anos, negro, um fugitivo, representa a fixação e carinho que Dylan tinha por Woody Guthrie, lenda da folk dos anos 40 que foi o modelo confesso do autor de The Times They Are a Changin".
Euforia ou ultraje?
"Os fãs hardcore de Dylan são um grupo de respeito. Suspeito que o filme vai pô-los num estado de debate frenético, destilando quer euforia quer sentimento de ultraje". São declarações de Haynes no dossier de imprensa. Por isso aquela história de seleccionar, para o acesso ao plateau, os jornalistas que não são fãs de Dylan, para que os problemas não comecem cedo demais? Pode ser, mas Haynes não é estranho à polémica com as suas reinterpretações da pop: quando filmou Superstar: The Karen Carpenter Story (1978) com bonecas barbie como "actores", foi processado por Richard Carpenter, a outra metade do duo Carpenter, chocado com o olhar sobre a irmã, que morreu anorética; também a incursão no universo de Genet em Veneno (1991), desencadeou disparos de associações conservadoras americanas, iradas pelo facto de fundos como o National Endowement for the Arts, que contribuiu para o filme, estarem a subsidiar "lixo".
Nesse dossier Haynes, 46 anos, permite que se imagine I"m Not There a partir das suas intenções. Não lhe interessou a biografia como procura do "verdadeiro Dylan", diz, embora tenha lido todas as biografias a que pôde deitar mão. Interessou-lhe mergulhar no espaço de criação e reinvenção, e isso são tanto as canções, as letras, os filmes como as entrevistas que Dylan deu.
Fã de Dylan no liceu, voltou a descobri-lo no final dos anos 90 num momento de "viragem" da sua vida pessoal e profissional. O que o tornou mais sensível aos cortes abruptos que Dylan imprimiu ao seu percurso. O processo não foi consciente, mas quando a pesquisa se tornou contemporânea "dos anos da administração Bush e da guerra no Iraque" houve um clique.
"Muita da minha própria raiva e descrença foram canalizadas para o retrato daquele aparentemente tão distante universo dos anos 1960 que, apesar de ter paralelismos com uma estratégia de guerra em roda livre, foi na maioria das vezes marcada por uma oposição engagé que se fazia ouvir, e nada disso aconteceu nos anos Bush/Chenney". Autoriza que se leia I"m Not There como "uma lembrança do que está em causa numa sociedade livre e o que se perdeu pelo caminho".
Haynes nunca se encontrou com Dylan. Nunca sentiu necessidade de falar com ele. A ligação foi feita através de Jeff Rosen, manager. E determinante foi o encontro com Jessie Dylan, filho de Bob, que é um realizador que povoa o universo indie de Los Angeles. Depois de ouvir Haynes "vender o seu peixe", Jeff aconselhou-o a escrever o conceito numa única folha de papel e a ter cuidado - "evitando qualquer referência ao "génio" de Dylan ou àquela coisa da "voz de uma geração"". O realizador mandou a folha, acompanhada por cópias de alguns dos seus filmes. Meses depois, a reposta chegou. Dylan disse que "sim".
E eis-nos então chegados às vésperas de apresentação mundial de um dos mais aguardados filmes deste ano. Que já mobilizou a comunidade musical: Eddie Vedder (Pearl Jam), Cat Power, Jeff Tweedy (Wilco), Antony & the Johnsons, Tom Verlaine, Karen O, Yo La Tengo, Surfjan Stevens, Charlotte Gainsbourg, Sonic Youth (um cover de I"m Not There no genérico final) ou Calexico, entre outros, interpretam na banda sonora canções de Dylan. O disco promete ser um dos acontecimentos de 2007.

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