Museus nacionais e o caso Dalila Rodrigues: os pontos nos is

O MNAA deixou de ser o segundo mais visitado para ser hoje o quarto (depois dos Coches, Arqueologia e Conímbriga)

No regresso de férias, verifico que as primeiras semanas de Agosto foram férteis em tomadas de posição recriminatórias da não renovação do mandato directivo de Dalila Rodrigues à frente do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Neste afã laudatório, houve quem se atrevesse a dizer que a posição comum tomada pela maior parte dos directores dos museus do Ministério da Cultura (MC), entre os quais me conto, há muito conhecida no mundo dos museus e maduramente reflectida, resultaria simplesmente de terem os seus lugares em risco, lembrando os tempos da ditadura. Claro que "não ofende quem quer, mas apenas quem pode". E, pelo menos no que me diz respeito, não reconheço a nenhum dos tais esforçados plumitivos, uns do tipo "tenho opinião para tudo", outros simplesmente mundanos, nem o estatuto intelectual, nem a vivência cívica capazes de sequer me incomodar. Mas porque a insídia pode causar impacte junto dos menos avisados, julgo que é chegado o momento de, por esta via, colocar alguns pontos nos is.Antes de tudo, o essencial: existe de facto uma crise de crescimento dos museus nacionais, conhecida do grande público pelo menos desde que, há cerca de dois anos e meio, os tais directores timoratos resolveram tomar posição, com eco tal que até Marcelo Rebelo de Sousa disse então "não lembrar ao careca" ter de fechar salas, por falta de pessoal. Acontece, porém, que as situações reais de crise constituem também terreno fértil para todo o tipo de oportunismos. Bastaria surgir alguém com suficiente ânsia de vedetismo, sempre à espera de ser bafejado pela sorte no virar de qualquer esquina da sinuosa estrada política em que vivemos, e cuja relação com os museus fosse meramente instrumental, para que a cartada clássica da vitimização fosse lançada. E é isto o que, de toda a evidência, se passou com a actuação e subsequente afastamento de Dalila Rodrigues da direcção do MNAA.
Muito antes dos desenvolvimentos deste Verão e correndo o risco de ofender o espírito de autodefesa prevalecente em muitas corporações da Cultura, já eu tinha tomado publicamente posição sobre esta matéria. Seria então muito mais pagante continuar calado ou manter-me acantonado na repetição da denúncia da escandalosa falta de cumprimento das promessas eleitorais e dos programas de Governo em matéria de obras de ampliação do museu que dirijo. Pois é, mas também nisso me procuro distinguir, por respeito para comigo mesmo: é que quem me conhece compreende que eu não misture os assuntos; lembrar-se-á das lutas cívicas e patrimoniais em que estive metido, viu-
-me já em muitas barricadas e sabe como sempre cultivei, e continuo a cultivar, uma postura profiláctica de distanciamento, no plano do exercício das minhas funções técnicas, relativamente a todos os poderes políticos, principalmente àqueles que, como o presente, me causam profunda desilusão no plano das minhas convicções cidadãs. Ora, nunca me lembro de ter visto Dalila Rodrigues em nenhum dos combates passados e constatei até que foi das que menos entusiasmo revelaram pelas tomadas de posição mais recentes, sempre que nestas se procurou fazer prevalecer uma postura colectiva.
Visto agora o alarido feito à volta deste "caso", quero deixar expresso que não partilho nem do estilo, nem das ideias de pseudo-autonomia do MNAA, nem em geral da visão dos museus de Dalila Rodrigues. E como se isto não bastasse - oh, suprema ignomínia !... - considero ainda, com base em dados objectivos e não em simpatias cirurgicamente construídas, que os seus indicadores de gestão no MNAA, tendo aspectos positivos que saúdo, estão longe de ser excelentes e nunca foram os melhores em termos comparativos, contendo além disso erros e debilidades que importa corrigir a curto prazo.
Afinal o que pretende Dalila Rodrigues? Deselegâncias e deslealdades à parte, quer que o MNAA seja financeiramente autónomo. Ou melhor, que o Estado lhe garanta os custos principais, podendo ela ficar com a totalidade dos proveitos obtidos em bilheteira e por via do mecenato. Pelo meio vai deixando cair a ideia de que foi ela quem conseguiu obter para o MNAA os mais importantes destes apoios, quando na verdade os mesmos lhe pré-existiam e foram negociados pela tutela que agora ela tanto ataca.
Considero esta tese da autonomia total profundamente errada e própria de um espírito confrangedoramente provinciano. Concordo e defendo desde há muito que uma parte das receitas geradas em cada museu seja nele reinvestida, para premiar e incentivar as boas práticas de gestão. Mas uma parte somente. A parte restante, sobretudo quando se trate de receitas decorrentes de acordos e posturas cívicas amplas, não emocionalmente confinadas a instituições particulares, deve ser gerida pelo organismo da Cultura responsável pelos museus, em nome de políticas de solidariedade e coesão nacionais. De resto, se o princípio da autonomia financeira total fosse para levar mesmo a sério, ele apenas poderia ser aplicado ao Museu Nacional dos Coches, o único que quase consegue financiar-se a si próprio.
Defende também Dalila Rodrigues que o MNAA deve possuir um tratamento singular relativamente a todos os restantes museus do MC. Pretende despachar directamente com o ministro da Cultura, à maneira do Louvre ou do Prado. Dá vontade de rir: sendo certo que o MNAA é o mais importante museu público português (uma espécie de primus inter pares, como aliás já é reconhecido administrativamente na actualidade), ele não constitui, nem do ponto de vista da diversidade temática e importância do acervo, nem do ponto de vista da presença institucional no país, nada de sequer aproximado àqueles outros (isto já para não falar em número de visitantes e receitas geradas, onde as diferentes são abissais). Desde os finais do século XIX abandonou-se em Portugal o modelo englobante de "Museu de Antiguidades Nacionais", tendo os respectivos acervos dado lugar à criação de vários museus nacionais. Pode discutir-se a bondade desta opção centenária; não pode é ignorar-se a realidade, em nome de projectos de ambição pessoal.
E finalmente uma palavra quanto a indicadores de gestão, matéria que tem sido analisada com seriedade entre os profissionais de museus, sempre na ausência de Dalila Rodrigues. Antecipando já a reacção óbvia que este meu texto vai provocar e a previsível acusação de que faço parte desse universo difuso de medíocres que não suporta ver alguém ter êxito à volta, direi que estou disponível para discutir, onde e quando Dalila Rodrigues ou quem por ela quiser, as performances dos museus, quer quanto à promoção de saberes decorrentes dos acervos que lhe estão confiados (factor que, no longo prazo, constitui o seu melhor indicador de êxito), quer quanto à coerência, justificação nacional e qualificação das exposições realizadas, quer ainda quanto ao número e tipo de visitantes. Está quase tudo por dizer e desmascarar nestas matérias. Nem mesmo no mais básico dos indicadores (o número de visitantes) pôde Dalila Rodrigues destacar-se, mau grado a intensa barragem publicitária que fez em sentido contrário. Entre 2005 e 2006, o MNAA foi o terceiro museu do MC com maior crescimento percentual de visitantes; e entre 2006 e o 1.º semestre de 2007 foi também o terceiro, mas a contar de baixo, com um decréscimo de visitantes assinalável. Durante a gestão de Dalila Rodrigues o MNAA deixou de ser o segundo museu do MC mais visitado (depois dos Coches), para ser hoje o quarto (depois dos Coches, Arqueologia e Conímbriga). Onde está aqui o êxito? E se usássemos outros indicadores mais fiáveis, como os rácios entre número de visitantes, investimento publicitário e custos totais, a capacidade de autofinanciamento, etc., em nenhum a gestão de Dalila Rodrigues seria favorecida. Isto já para não falar em aspectos essenciais relacionados com a conservação dos acervos e as opções museográficas... onde os profissionais dos museus, a começar pelos técnicos do MNAA, conhecem bem o que de mal foi feito.
Concedo apenas uma dimensão em que Dalila Rodrigues consegue talvez fazer melhor do que todos nós: a sedução dos jornais, dos VIP e dos pseudo-VIP... e as festanças do tipo "olé-olé" (segundo a expressão de Vicente Jorge Silva) que promoveu, numa parasitagem dos acervos que eu me recuso a favorecer desenfreadamente, porque não vivo obcecado por cair nas boas graças da movida nocturna e dos media, nem considero que nos museus se deva viver um clima de vale-tudo, em ordem à atracção de frequentadores, que nem sequer são visitantes em muitos casos.
Director do Museu Nacional de Arqueologia

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