As crianças aborígenes que a Austrália roubou aos pais

Bruce Trevorrow é a primeira vítima da Geração Roubada a ver o seu sofrimento reconhecido pela justiça australiana. Durante décadas, mais de 100 mil crianças aborígenes foram arrancadas às famílias e dadas para adopção a brancos ou colocadas em instituições

a Na noite de Natal de 1957, Joe Trevorrow estava numa situação difícil. Sozinho em casa com os quatro filhos, porque a mulher tinha ido visitar familiares, percebeu que o mais pequeno, Bruce, de 13 meses, estava aflito com dores de estômago. Sem carro, e tendo que tratar dos outros três filhos, este aborígene australiano pediu a um vizinho que levasse Bruce ao hospital infantil da cidade de Adelaide. Joe nunca mais viu o filho mais novo. Bruce Trevorrow foi uma entre milhares de crianças aborígenes que durante décadas (até aos anos 70 do século passado) foram retiradas às suas famílias e entregues a famílias brancas ou a instituições. E hoje, aos 50 anos, tornou-se o primeiro daquela que chamam a Geração Roubada, a receber uma indemnização (381 mil euros) e a ver os seus direitos reconhecidos pela justiça australiana.
Quando deu entrada no hospital nessa noite de Natal, conta a BBC, Bruce foi registado como não tendo pais e sofrendo de negligência e subnutrição. Da sua casa muito rudimentar num campo aborígene a 150 quilómetros de Adelaide, sem telefone, a mãe de Bruce, Thora Frances Lampart escreveu uma carta ao hospital, cinco meses depois do internamento. "Escrevo para saber se me podem dizer como está o bebé Bruce e quando é que o posso levar para casa. Não me esqueci que tenho aí um bebé".
O que Thora não sabia nessa altura era que o filho tinha já sido dado para adopção a uma família branca e tinha uma nova "mãe", Martha Florence Davies. Martha vira no jornal um anúncio pedindo famílias de acolhimento para crianças aborígenes abandonadas e foi assim que chegou a Bruce. Apesar disso, o Gabinete de Protecção dos Aborígenes respondeu a Thora que o bebé estava a "fazer progressos" mas que tinha que permanecer no hospital mais algum tempo.
Uma vida destruída
Foi assim que Bruce cresceu numa família branca, com dois irmãos que não podiam ser mais diferentes dele. "Estava sempre a perguntar aos meus pais porque é que era diferente", contou à BBC. "Eles diziam que tínhamos familiares escuros". Muito mais tarde, quando Bruce tinha já dez anos, Martha não aguentou mais o seu comportamento instável, e o Estado devolveu-o à família de origem, cujo paradeiro até aí afirmara desconhecer. Bruce reencontrou finalmente a mãe e os irmãos (o pai tinha já morrido nessa altura), mas nunca conseguiu ter uma vida normal, mergulhando no alcoolismo, e em depressões, e sendo incapaz de manter um emprego. Foi com base nesta vida destruída que em 1998 decidiu processar o Governo do Estado da Austrália do Sul.
O facto de a justiça ter reconhecido que Bruce Trevorrow foi uma vítima e devia ser indemnizado por isso poderá abrir caminho a outros casos semelhantes. Há pelo menos dez anos que ninguém pode dizer que não sabe o que aconteceu durante décadas aos aborígenes. Um relatório tornado público em 1997 e intitulado Bringing Them Home calcula que pelo menos 100 mil crianças foram retiradas às famílias - uma política que partia do princípio de que os aborígenes não tinham condições dignas para os criar, e que eram uma "raça em risco", pelo que as crianças teriam garantias de um futuro melhor crescendo numa família branca. O caso de Bruce prova que não é assim. Enquanto ele luta contra o alcoolismo e a depressão, os seus dois irmãos, criados pela mãe, cresceram sem problemas, segundo conta a imprensa australiana.
Fome e maus tratos
Embora seja neste momento a mais mediática, a história de Bruce não é das mais trágicas. O relatório Bringing Them Home conta muitas outras histórias de crianças separadas dos pais de forma violenta e levadas para centros de acolhimento onde, relataram as próprias anos depois, eram humilhadas, maltratadas e frequentemente espancadas. "Às vezes à noite chorávamos com fome", conta uma das vítimas. "Tínhamos que vasculhar no lixo, comíamos pão velho, partíamos garrafas de molho de tomate para as lamber". Outra fala dos maus-tratos: "Vi raparigas nuas, amarradas a cadeiras e espancadas. Todas passámos pelo período em que éramos fechadas em quartos escuros. Eu desmaiava com frequência e batiam-me com um cinto sempre que desmaiava [...] Como é que isto pode ser para o meu bem? Por favor digam-me". Durante esse tempo, diz o relatório, as crianças viram os seus nomes serem alterados, foram impedidas de contactar as famílias, e eram castigadas se falavam na sua língua.
Mas não será fácil que todas elas - ou mesmo muitas delas - consigam o mesmo reconhecimento que Bruce conseguiu. Claire O"Connor, que fez parte da equipa de advogados, explicou à BBC que o grande trunfo deste caso foi a existência de documentos que provam que a mãe de Bruce o procurou no hospital e que o hospital mentiu sobre o seu paradeiro. "Não é costume ter esta quantidade de provas. Com elas pudemos provar que o Gabinete de Controlo Aborígene foi negligente".
Mas, com compensações ou sem elas, muitas vítimas da Geração Roubada sentem que nada poderá apagar a dor. Como diz uma delas no Bringing Them Home: "Não passa nunca. Só porque não andamos com muletas, ligaduras nas nossas pernas e braços não significa que não estejamos a sofrer. Suspeito que terei estas feridas até ao dia em que morrer. Só gostaria que não fossem tão intensas, é tudo".

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