Torne-se perito

Sebastianismo, ovnilogia e desesperança

Milhares de emigrantes rumam este mês ao santuário, no ano em que passam nove décadas sobre o fenómeno. Até 15 de Agosto, publicam-se aqui excertos da Enciclopédia de Fátima

a O vocábulo "sebastianismo", que na origem teve um simples significado literal (a esperança no reaparecimento do rei que levou sumiço, e a quem a exegese aplicou as tipologias sugeridas por Bandarra, João de Castro e padre António Vieira), beneficiou de lapidações semânticas que lhe alteraram o significado original, de modo que o termo sofre, pelo menos desde os finais do século XVII, de uma amplificação de sentido. Assim, utiliza-se para designar as várias formas de esperança e de expectativa dos povos (e sobretudo do povo português) numa idade de ouro, ou numa época de regeneração e de reintegração na felicidade perdida. (...) Consideramos inadequada a relação, conceptual ou poética, entre o sebastianismo e Fátima, embora seja inevitável a ligação do estado de desesperança portuguesa na época das aparições à esperança que elas trouxeram, tanto ao povo em geral como aos católicos em particular. O corpo da nação sofreu as moléstias que motivaram, tanto o geral do povo como o especial dos intelectuais e pensadores, crença em melhores tempos. Guerra Junqueiro (poema Pátria, cena XXI, de 1896) evoca Nun"Álvares como a vera efígie do "Salvador", chegando a identificá-lo com a Pátria. (...) Os típicos espiritualistas portugueses não desdenham a urgência de um milagre, um deles (Sampaio Bruno, A ideia de Deus, no fim), clamando pela vinda, não de um intermediador, mas de "um Cristo", cujos milagres fossem prodígios de ciência e actos de redenção.
Em idêntica linha se situa o clamor saudoso de Teixeira de Pascoaes: "Ó Saudade, ó Saudade! Ó Virgem mãe/Que sobre a terra portuguesa/concebereis isenta de pecado/o Canto da Esperança e da Beleza" (As sombras). A teoria geral da esperança messiânica peculiar aos movimentos da Renascença Portuguesa e do saudosismo reveste-se de um "catolicismo irregular", de fácil assimilação pela piedade e pelo temor populares, mas sem uma consistência teológica adequada. Essa esperança, mais aparentada com o providencialismo do que com o sebastianismo, liga de forma ôntica e poética os valores da Fé da Pátria (...).
Tudo está dito, ou cantado, nas quadras do Avé de Fátima, de Um servita (Afonso Lopes Vieira, 1929) sobretudo na segunda estrofe: "Nas dores da guerra/o mundo sofria/Portugal ferido/sangrava e gemia". O triunfo da República Nova e do sidonismo abriu as portas a uma "nova era", e só então se ligou o anúncio da Cova da Iria à orientação da nova vida portuguesa. O "Perpétuo Socorro" revelara-se.
Numa crónica romanceada com o óbvio propósito de esvaziar Fátima da dimensão sobrenatural, José Rodrigues Miguéis (1975) efectua uma descrição fenomenológica da sociedade portuguesa nos anos que vão de 1917 a 1926, em que o "milagre de Meca" (eufemismo ficcional para esconder o nome da Cova da Iria) funciona como força axial, "início duma era de ressurgimento religioso". O povo acreditou, e só Salomé sabia que a Senhora aparecida aos pastorinhos em Meca fora ela, Salomé, uma mulher jovem de vida irregular, num dia em que, doente de nostalgia, voltara à aldeia e vagueava pelo monte.
Os fenómenos religiosos permitem variedade de leituras, e Fátima não escapa ao ditame. Existe uma interpretação providencialista na teoria ovnilógica das aparições, e ainda uma abordagem islâmico-fatimida, que nas aparições intelige apenas uma parte da revelação, cujo final continua oculto: quem aparece em Fátima é a Mãe do "Imam oculto", cuja vinda unirá todos os povos na Casa do Deus Uno e Único. As leituras heterodoxas, fora do cânone eclesial, existem, sendo inegáveis. A tese imamista aproxima-se do protótipo sebastiânico, se considerarmos que, nalguma tradição, Sebastião deveio "o Imam ocultado". A interpretação de uma teofania mariânica, preparatória do advento do "jovem", surgido no mais profundo do Ocidente da Europa (Nostradamus) é decerto mais sebastiânica do que a anterior, mas também ligada a uma exegese daquilo a que chamaremos corografia sagrada, em que se entrelaçam a mística templária (Tomar), a canonicidade da Cova da Iria e a problemática Ladeira - lugares constituintes do "triângulo místico português", segundo alguns escritores. (...)
Ainda que deviesse "altar do mundo", Fátima não perderia o carácter de bênção nacional, conforme ao cântico já citado, anterior à oficialização das aparições: "Achou logo a Pátria/remédio a seu mal./ E a Virgem bendita/salvou Portugal", tudo em consonância com o providencialismo, tão caro à teoria da história portuguesa.
Investigador, autor do Dicionário de Filosofia Portuguesa

Excertos da entrada Sebastianismo e Fátima, da Enciclopédia de Fátima, Ed. Principia; selecção de textos de António Marujo

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