Torne-se perito

Buraka Som Sistema "O" momento do segundo dia de Sudoeste

Buraka Som Sistema, Bonde do Role os Data Rock a tocar Time Of Our Lives: música periférica a tornar-se o centro dos acontecimentos.
Foi essa a imagem de marca do segundo dia de Sudoeste, aquele
onde não sobressaiu um destaque claramente identificado

a O ano passado, no Sudoeste, os Buraka Som Sistema actuaram perante escassas centenas de pessoas num palco secundário. No principal estavam os Daft Punk que, do alto de uma pirâmide luminosa, entre luzes e néons e mais luzes, concentravam todas as atenções. Um ano depois, muito mudou. Os Buraka Som Sistema encerraram a noite de sexta-feira, no palco principal, e tiveram uma multidão a responder um sonoro "Sim!" à pergunta lançada por Conductor: "Sabem dançar kuduro?" O povo a responder com desenvoltura ao apelo para a dança, aquela dança selvagem dos Buraka, e a não arredar pé até que a segunda passagem por Yah! anunciou o que se temia. Ao contrário do desejado pela hiperactiva Petty, não iríamos dançar o kuduro da nossa modernidade até às seis da manhã. Eram três e muito e a nação "festivaleira" estava saciada. Saciada dos ritmos quebrados, primários, que se misturavam com techno agressivo e sintetizadores para pista de dança quimicamente eufórica. Saciada da farinha, gasolina, do bate no peito com respeito, do Quem é essa mulher? e do grito de guerra, Yah!, que resume na perfeição este música que se atira directamente ao corpo, sem qualquer subtileza, e o sacode com uma euforia contagiante. Isto é Lisboa e isto é Luanda, isto são clubes de vanguarda em Londres, isto foi "o" momento do segundo dia do Sudoeste 2007, sexta-feira.Um ano depois, os Buraka Som Sistema de Lil John, DJ Riot e Conductor, os Buraka Som Sistema do poeta urbano Kalaf e da espalha brasas Petty no Sudoeste, palco principal. Telas de sofisticação vintage a disparar luz vermelha e branca e dançarinas, que mandaram às malvas qualquer noção de coreografia, a celebrar o corpo em dança frenética e provocadora. São três da manhã e um miúdo de quatro anos abana-se nos ombros do pai, são três de manhã e há muito que se formaram espontaneamente rodas de dança. Suor do calor em noite não tão quente, suor a que a música obriga. A celebração de um momento: Música periférica, de identidade múltipla, a tornar-se o centro dos acontecimentos. Foi essa a imagem de marca do segundo dia de Sudoeste, aquele onde não sobressaiu um destaque claramente identificado - como na abertura com Manu Chao. Por isso mesmo, esteve menos gente no recinto e mais festivaleiros optaram pelo parque de campismo e pela praia.
Os Cypress Hill viveram do passado e representaram-no, com vitalidade assinalável, num concerto curto. Foi bom recuperar um par de memórias, soube bem relembrar Insane In The Brain e aquele hip-hop de batida certeira e gingar latino. Até achámos piada ao keffieh de B-Real, qual Arafat amante de marijuana, mas só isso. Os Cinematics, por sua vez, foram o momento rock mais tradicional - facção Glasgow, Franz Ferdinand e pós-punk anos 80 - num dia pouco dado à "tradição".
Melting-pot
Num dos extremos do recinto, abriu a palco reggae e começou um festival dentro do festival. Um característico cheiro aromático enche o ar e, independentemente de quem sobe a palco, é certo que 80 por cento dos presentes não mais arredarão pé dali. Vimos também uns Balla a vogar elegantemente pelo ambiente da chanson e pela estética irrepreensível da pop de 60 - Bacharach, uma colectânea de singles psicadélicos e bandas sonoras de John Barry - e houve quem preferisse, em vez dos concertos, a stand-up comedy de Pedro Tochas ou as aulas de merengue, cha-cha-cha e salsa, disponíveis na tenda discreta colocada atrás do Planeta Sudoeste.
A alma do segundo dia de festival esteve, porém, na celebração de música que recusa o estatismo e paradigmas de gosto. Música física concentrada em fazer bem a algo maior: a dança. Um melting-pot anunciado de forma desbocada.
Foram isso os Buraka Som Sistema e não precisamos de o repetir. Foram isso, embora filiados na genealogia clássica anglo-saxónica, os surpreendentes noruegueses Data Rock. Subiram ao palco Planeta Sudoeste nos seus uber cool fatos de treino vermelhos e, durante uma hora, foram punk-rockers com canções de três minutos e os Buzzcocks como almas tutelares, foram gingões como os Franz Ferdinand e dançaram à Who Made Who. Puseram as guitarras de lado, deram destaque à caixa de ritmos e demos por nós numa festa acid-house de inícios de 80, atiraram-se gloriosamente ao funk e avisaram: I used to dance with my daddy. Os pais dele dançavam bem, eles dançam ainda melhor e o público reconheceu-o com uma despedida calorosa. Emocionados, agradeceram pondo bem alto nas colunas de som Time Of Your Lives, esse "hino" geracional que levou à perdição tantos adolescentes que cresceram a ver ou a fugir de "Dirty Dancing" e de Patrick Swayze. É como dissemos acima, fusão - de tempos e linguagens - e o hedonismo da dança como catalisador.
Algo que começou bem cedo com os Cool Hipnoise. Melhores que nunca, apresentaram de forma irrepreensível tudo o que precisamos de saber sobre funk, soul ou reggae. Exploraram as raízes de toda essa música, transformaram-nas em canções a que o palco só faz bem e quando terminam a actuação, num festim percutivo que motivou a primeira aclamação da noite, ficamos sem perceber porque tocaram tão cedo, quando o sol ainda se punha no horizonte. Questão que não se pôs com os Bonde Do Rolé, o escatológico trio brasileiro que remexe no lixo - o lixo da favela, o lixo hard-rock, o lixo do calão - e se diverte imensamente a fazê-lo. O público, como o revelou a maior enchente no Palco Sudoeste, diverte-se com eles. Um DJ que também rappa (ou melhor, grasna), um MC e uma MC que nos obrigam a redefinir o conceito de bom gosto - "Marina, mostra a vagina", diz ele e ela não mostra, despe-se até ao corpete. Miúdos indie a procurar o bas-fond e a trazerem-no directamente para o palco, onde o podem viver em segurança. Um hino a tudo o que é descartável, uma ironia pós-moderna onde o hip-hop é obra de um teclado Casio e favela funk o primeiro passo para recordar hits dos Poison e dos Europe - o público adora-os, os Buraka Som Sistema elogiaram-nos em palco. Música que confunde conceitos, que nos surpreende pela rudeza da linguagem, pela sua vontade de ser fusionista sem programa estético, que quer ser presente sem estar preocupada com o futuro: Em dia sem destaques óbvios, eis a marca daquela sexta-feira de Sudoeste.

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