Rescaldo das televisões a arder (parte I)

Os eventuais indícios de má actuação da RTP poderão ser considerados sinais de censura?

Um jornalista encartado escreveu que Sócrates mandou censurar a RTP, mas não apresentou provas, nem foi perguntar ao primeiro-ministro o seu ponto de vista. Também disse que os jornalistas da RTP se deixaram censurar e não lhes pediu explicações. Não me pretendo juiz nem advogado nesta causa, mas sustento que o visado não se pode condenar liminarmente. E, mesmo tratando-se de um jornalista atípico, temo que, a prevalecerem sem discussão certos tabus de outros tempos, se esteja a limitar a possibilidade de fazer jornalismo em Portugal.Estamos a falar de quê? Eduardo Cintra Torres (E.C.T.), mais conhecido como crítico de televisão, escreveu no PÚBLICO um artigo intitulado "Como se faz censura em Portugal", classificando o Telejornal da RTP do dia 12/08/06 como "uma das peças mais tenebrosas da informação televisiva em Portugal em muito tempo" (...), um "exemplo da sua linha editorial" (...), "uma nova forma de censura". Aqui o texto desvia-se da simples opinião e acrescenta matéria factual da maior gravidade: "As informações de que disponho indicam que o gabinete do primeiro-ministro deu instruções directas à RTP para se fazer censura à cobertura dos incêndios - são ordens directas do gabinete de Sócrates."

Dêem-se as voltas que se derem, "a opinião é livre, os factos são factos". É o incontornável paradigma da liberdade de expressão. O jornalista cidadão é livre de opinar, mas não pode inventar os factos que critica. E não vale a pena distinguir se o autor se coloca na posição de crítico ou de jornalista ou de investigador (E.C.T. assume-se nessa tripla função). Também é ocioso discutir se o texto tem carácter noticioso (com exigência de objectividade) ou se é um comentário de opinião (livre por natureza). Trata-se aqui de um género híbrido, avançando factos para sobre eles emitir opiniões. Mas em nenhum caso pode o autor ficar dispensado da verdade dos factos, que são a matéria da sua crítica.Ora E.C.T. não prova a sua acusação, limitando-se a tentar uma contraprova baseando-se em indícios de má actuação da RTP. Segundo o autor, o canal público sai-se mal da comparação com as outras estações: a) no dia 12/08, a RTP fez três notícias de incêndios, ao passo que a SIC e a TVI davam dez, cada uma; b) a RTP não fez nenhum "directo", ao contrário da SIC, que fez três e a TVI outros tantos; c) a RTP remeteu os incêndios para a página 18 do alinhamento, enquanto a SIC e a TVI abriram os seus jornais com o tema. Mau desempenho da RTP? Censura imposta?
Os dados não falam por si, é preciso interpretá-los. Em primeiro lugar, não se vê como tirar ilações de um dia isolado (para mais, um sábado do meio de Agosto). E o que terá feito a estação nas primeiras semanas da devastação incendiária, quando o acontecimento era uma novidade? O crítico não fez este trabalho. Mas um estudo da Mediamonitor -Marktest (publicado no Diário de Notícias de 22/08) revela que no período alargado de 1 de Julho a 20 de Agosto não houve grandes discrepâncias entre as três estações. A ser assim, a análise estatística de E.C.T. não teria sido a mais adequada. E, mesmo que fosse, nunca seria de admitir que a análise científica se limitasse aos parâmetros quantitativos (os únicos susceptíveis de medição), deixando de lado os valores qualitativos, que não é possível mensurar, mas são fundamentais na comunicação social. Obviamente a sobreposição dos três factores quantitativos não é indiferente e significa que determinada estação tratou mais o assunto que outra. E depois? Mais importante que a quantidade, o que é preciso é discutir quem terá tratado o tema com melhor qualidade e se alguém pecou por excesso ou por defeito. E, já agora, o que teriam feito em circunstâncias análogas as televisões estrangeiras de referência?

Acrítica ao crítico não discute a liberdade de opinar, discute os seus critérios jornalísticos, que ele considera decisivos e que, segundo a prática profissional, são altamente discutíveis.a) A importância da notícia não se mede pela sua duração. Discuta-se antes se, ao fim de dois meses de telejornais a arder, ainda se justifica dar aos incêndios um terço do espaço noticioso, como fizeram algumas estações. Há anos que os jornais e a opinião pública censuram a insistência ad nauseam da febre incendiária das nossas televisões (além de outros casos despudorados, como a cobertura da tragédia de Entre-os-Rios). O próprio E.C.T. vituperava no PÚBLICO a "cobertura em excesso" dos incêndios de Verão, chegando a sugerir que não se ultrapassassem os "dois minutos de antena". Nessa altura, o crítico apelava para um esforço de auto-regulação dos três operadores, no sentido de procurarem "alguma decência na exibição das chamas", deixando de absolutizar o "share incendiário" e decidindo "se querem informar em liberdade ou se querem aumentar as audiências". Nada mais correcto.
b) O valor da notícia também não depende do número de "directos". As televisões banalizaram o "directo", pretendendo insinuar que o "repórter estava lá" para fazer a reportagem presencial dos acontecimentos "em tempo real". Quando não há nada de novo para mostrar, mostra-se o próprio jornalista stand-up, agora transformado em matéria de informação - e exige-se aos repórteres no terreno que "dêem a cara", nem que seja para dizer que não há nada para dizer, num simulacro de "tempo real" que só engana os incautos. Uma boa prática jornalística deve valorizar o directo instantâneo do repórter no local, quando ele é necessário, isto é, se acrescenta dados que não foi possível registar em imagem ou que esta por si mesma não elucida, ou se fornece um comentário interpretativo, o ponto de situação ou o balanço de última hora - enfim, a narração do acontecimento acontecendo (como é normal no relato da rádio, donde aliás o género migrou, mal, para o espaço televisivo).
c) É primária a ideia de que os assuntos importantes devem ser paginados na abertura do Telejornal e nunca lá para diante. O alinhamento depende do peso do acontecimento e da sua actualidade, à luz da linha editorial do jornal. A meio do Verão, os incêndios continuam importantes, mas já não são novidade de primeira página, a não ser em casos excepcionais. O próprio E.C.T. informou em primeira mão que a linha editorial da RTP tinha avançado um conjunto de normas, que, na nossa opinião, ninguém de bom senso pode pôr em causa. A RTP1 não foi brilhante, mas fez trabalho honesto. Falhou a notícia do incêndio no Gerês, como aconteceu a outros jornais. Imperdoável. "Um dia infeliz" - escreveu Luís Marinho, director de Informação da RTP. Ou será mais um caso de impróprias "condições de produção", de incúria, de falta de profissionalismo dos responsáveis? Mas querer esconder o fogo do Gerês com a peneira da censura é que seria rematada loucura.
Em resumo: o autor não arrola nenhuma prova da acusação de censura na RTP e os indícios que explora carecem de base técnico-editorial. Quer isso dizer que a sua acusação é falsa? E se fosse verdadeira? Jornalista (Primeiro de uma série de dois artigos)

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