Sul de Portugal regressa ao caminho das estrelas

São cada vez mais evidentes os sinais de peregrinos que iniciavam no Cabo de S. Vicente a longa caminhada para o Cabo Finisterra na Galiza

a O equívoco que associava os Caminhos de Santiago ao norte de Portugal e a Lisboa, e que prevaleceu durante séculos, deixou de ter fundamento histórico. Os primeiros sinais desta afirmação histórica surgiram no início da década de 90 do século passado, quando a equipa de investigadores da Diocese de Beja recolheu indicações sobre a existência de um antigo caminho para Santiago de Compostela que partia do Cabo de S. Vicente e atravessava o Baixo Alentejo junto ao litoral em direcção ao norte do país. Os documentos pesquisados fazem referências "a peregrinos que caminhavam para norte, nos séculos XVI e XVII", esclarece José António Falcão, director do Departamento Histórico e Artístico da Diocese de Beja (DHADB). Testemunhos que realçam o apoio prestado aos peregrinos num pequeno hospital em Odemira e fazem referência a uma barca que nesta vila alentejana fazia o transbordo de romeiros sobre o rio Mira.
António Martins Quaresma, historiador natural de Odemira, também já recolheu algumas indicações documentais que corroboram a posição do director do DHADB. Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela, relata numa cantiga o milagre feito por Santa Maria em Odemira. Nessa cantiga, a nº 327, Afonso X diz que ouviu o milagre contado por peregrinos que por ali passaram a caminho de Santiago. O caminho podia começar, segundo o historiador, no Cabo de S. Vicente, um sítio religioso desde o paleolítico.
O quadro tradicional que situava o fenómeno das peregrinações apenas no norte do país poderá ser atribuído, à "cronologia relativamente tardia da organização da Igreja na área meridional após a Reconquista", realça António Falcão. Depois da restauração, em 1640, emergiu o "ímpeto nacionalista" que evitou associar Santiago de Compostela a Espanha. Superados os constrangimentos históricos, os peregrinos, lenta mas de forma continuada, retomam os caminhos para Santiago de Compostela, oriundos, na sua maior parte, da região de Lisboa e do norte do país.
No entanto, ao grosso dos romeiros do século XXI juntam-se, cada vez mais, os que iniciam a caminhada no Cabo de S. Vicente, acreditando que os ancestrais caminhos portugueses para Santiago se iniciavam a sul.
Foi esta a leitura que fizeram dois jovens quando procuravam em meados de Julho, junto à velha ponte de ferro que transpõe o rio Mira em Odemira, o local preciso onde os romeiros, vindos de sul, transpunham a linha de água utilizando uma barca para prosseguir a sua viagem rumo ao santuário na Galiza. Por isso, estranharam que já ninguém se lembre que, em tempos, no rio Mira, havia uma barca para franquear a linha de água apesar dos dois marcos que serviam de ponto de amarração da barca estarem bem visíveis. A busca interior e o espírito de aventura justificam para os jovens, que não querem ser identificados, esta longa viagem de bicicleta.
Frustrada a intenção da atravessar de barca o rio Mira, montam nas suas bicicletas rumo ao Cercal do Alentejo, depois Santiago do Cacém, Melides, Comporta, Setúbal onde vão entroncar no caminho que segue pelo centro do país.
Nada identifica o duo de jovens peregrinos do nosso tempo com os que, durante séculos, fizeram a longa caminhada ataviados com chapéu de aba larga, adornado com uma concha (vieira) - símbolo dos peregrinos a Santiago de Compostela -, o bordão e sandálias adequadas à longa provação que poderia demorar meses e até anos. Apenas o facto do seu meio de locomoção continuar baseado na força das pernas para pedalar as suas bicicletas, mantinha alguma similitude com os romeiros de tempos ancestrais, acrescida das razões que justificam a longa caminhada.
Não são os primeiros a rumar ao sul para encontrar a rota do norte. Há cerca de uma dezena de anos, começaram a aparecer os primeiros peregrinos em Santiago do Cacém. Vinham a pé, outros de bicicleta e mochila às costas, queixando-se, alguns, da incompreensão de pessoas que já não tinham a mínima noção do que era um romeiro.
O peregrino do século XXI traz na bagagem um passaporte próprio, mais simbólico que oficial. Ao passar pelas paróquias e pelos santuários pede o carimbo que documente a sua passagem. Em Santiago do Cacém, há "um carimbo destes", explica Leonel Pereira, que presta serviço na Igreja Matriz da cidade do litoral alentejano, frisando que a maior parte dos cerca de 70 romeiros que ali passaram em 2006 eram estrangeiros e vinham, quase todos, do Algarve e da Andaluzia em direcção a Santiago de Compostela. O sul de Portugal regressa ao caminho das estrelas, o nome pelo qual também é conhecido a Estrada de Santiago e que faz uma associação à Via Láctea

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