Apocalipse já aqui ao lado

"Vou ao Porto", dizem as pessoas no bairro de São João de Deus, do Cerco ou do Lagarteiro quando de lá saem para ir à cidade. Quantos leitores terá o PÚBLICO ou a crítica de teatro nesses bairros, e quantos espectadores as companhias de teatro do Porto? Não se sabe. A "cidade para lá da circunvalação", tão distante de nós como o Cambodja e o Vietname de Coppola, é um espelho onde se vê o oposto do leitor de jornal e espectador de teatro. Ou talvez não. Mas por esta zona ser um complexo de guetos, os Visões Úteis acharam que era o cenário apropriado para uma viagem com as palavras de O Coração das Trevas, de Conrad. E embora no início apenas pareça ficção, o táxi é a sério, a cintura externa do Porto existe, e o dia escurece durante o percurso. Mas não só: as consequências são reais no que a ficção pode ter de real. A imaginação e a memória do espectador mudam.Depois da performance, nada continua na mesma. E isso não é porque o percurso pela zona oriental nos dê a ver a miséria ou a marginalidade, que dá, nem sequer pelo voyeurismo que nos é devolvido, que é, mas porque o espectáculo se debruça sobre nós próprios, sobre o nosso medo quotidiano, irremediável, que ocultamos debaixo do tapete de asfalto. Um dos momentos sublimes da viagem é quando, já quase noite, se multiplicam os táxis à volta do nosso, como se eles pudessem ser os espectadores e nós os consumidores do produto. Fica claro o quanto dependemos uns dos outros.
O audiodrive começa e termina nas estações de metro, lugares neutros, depois de uma excursão aos vestígios da ruralidade (no Azevedo) e da habitação social (nos tais bairros).
É apenas uma viagem de táxi para três pessoas e dois actores, e seria injusto compará-la com os outros espectáculos em cartaz, mas pelo menos este faz algum sentido. Apetece dizer como no refrão de Panic, dos Smiths, que apela à revolução: "Hang the blessed DJ / Because the music that they constantly play / It says nothing to me about my life". Ao fazer uso das fábulas de Conrad sem aniquilar o mistério, o grupo coloca-se como mediador impecável entre a realidade do público e a intuição do escritor, ao mesmo tempo que explora os limites da arte para nos falar sobre o mundo.
Apocalypse Now, o filme, já era uma espécie de conto infantil que, obviamente, não fala sobre o Vietname, tal como o Capuchinho Vermelho não fala sobre lobos. O Resto do Mundo não é apenas sobre o apocalipse diário no outro lado das vias rápidas, de onde se vê, em contraste, omnipresente e luminoso, o Estádio do Dragão e o centro comercial Dolce Vita. Os Visões causam uma experiência pessoal que sintetiza reflexão e emoção. O espectáculo é um exercício sobre o que significam as palavras de Conrad para o grupo e para o seu público e sobre como usar a arte para explorar significados, celebrando a versatilidade e adaptabilidade de uma fábula aos mais variados contextos e realidades.
Quais as consequências deste trabalho? Pelo menos, há novos projectos previstos pelos Visões Úteis, naqueles bairros, para Setembro de 2007, e estes não serão apenas sujeito das nossas visões. O estádio e o centro comercial foram vistos de outro lado, e os significados de Dragão e Dolce Vita são menos literais e têm outras ramificações, que chegam ao extremo oriental passando por cima da via rápida. O apocalipse está mais perto.

Jorge Louraço Figueira

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