Ainda o Serviço Cívico Estudantil

Polémica: o peso de António Hespanha, do PCP, da UEC e de Zita Seabra nas decisões do Ministério da Educação em 1974

Oeditorial José Miguel Júdice, Zita Seabra e nós, os metecos recorda o Serviço Cívico Estudantil. Mesmo sendo um artigo de opinião, penso que estão em causa referências a pessoas e que se deve atender ao estado de conhecimentos sobre a matéria. Como o serviço cívico constituiu matéria de investigação central do meu doutoramento, é minha obrigação efectuar as seguintes observações:1. José Manuel Fernandes afirma que a "ideia surgiu depois das campanhas de alfabetização do MFA". Ora, não houve campanhas de alfabetização efectuadas pelo MFA - como se pode ver nos vários trabalhos de Sónia Vespeira de Almeida que têm como objecto central de estudo as campanhas de dinamização cultural do MFA ou o livro da minha autoria Estudantes e povo na revolução.
2. José Manuel Fernandes, citando Zita Seabra, sustenta que a criação do serviço cívico se deveu a uma directriz do PCP, inspirada no modelo cubano. A documentação trabalhada e coligida para a tese referida (materiais de arquivo, periódicos, testemunhos orais, fontes secundárias), bem como obras de natureza diferente (como as de Vitorino Magalhães Godinho de 1975 e de Orlando Ribeiro de 1976), mostram várias forças envolvidas na criação desse serviço, a saber, aqueles que tinham que resolver o insolúvel problema de lidar com uma avalancha de 28.000 candidatos ao ensino superior (sendo que tinha havido 14.161 inscrições no 1º ano do ensino superior no ano lectivo anterior), numa conjuntura de mudanças radicais que abarcavam os mais diversos campos (composição do pessoal docente, a avaliação de conhecimentos, reestruturação dos cursos, novas formas de gestão, etc.). Há um constrangimento material na base da tentativa de solução que foi o Serviço Cívico Estudantil. As fontes trabalhadas fizeram ressaltar que as forças que apoiaram o serviço cívico foram uma parte do PCP (nomeadamente a União dos Estudantes Comunistas, a UEC), parte do PS e parte dos católicos-progressistas; no ano seguinte, os sectores do PS e do PCP apoiantes deixaram de o ser; em 76/77, durante o Iº Governo Constitucional, do PS, o Serviço Cívico Estudantil é extinto em Junho.
Na gestação do Serviço Cívico Estudantil, as personalidades e forças relevantes socorreram-se dos reportórios disponíveis, de que o caso cubano é um exemplo relevante. Contudo, também o são a Acção Psicológico-Militar da Guiné do general Spínola, as Campanhas de Alfabetização e Educação Sanitária do Verão de 1974 lançadas pela Pró-
-União Nacional dos Estudantes Portugueses, as acções estudantis de apoio às vítimas das cheias de 1967, entre outras. Contudo, mais importante, é sublinhar que tudo se desencadeia devido a um problema material indiscutível: a incapacidade do ensino superior em absorver todos os candidatos à sua frequência no ano lectivo que se iniciava no Outono de 1974.
3. José Manuel Fernandes, baseando-se novamente em Zita Seabra, afirma: "Porque era necessário "tratar da formação revolucionária dos estudantes (...), o secretário de Estado do PCP Avelãs Nunes, juntamente com o director-geral do Ensino Superior, António Hespanha, avançam com a proposta". Ora não houve unanimidade no interior do PCP, nem o PCP controlava o Ministério da Educação, como já em 1987 a tese de Teresa Ambrósio apontou. A proposta da criação do Serviço Cívico Estudantil defendida pela UEC, pela voz de Zita Seabra, foi sentida por Hespanha como "uma pedrada na cabeça", atirada num contexto em que o Ministério da Educação tentava solucionar por outros meios (entre os quais, os exames de aptidão que foram boicotados na maioria das escolas) o problema do grande afluxo de candidatos ao ensino superior. O testemunho de Hespanha constante da obra de Teresa Ambrósio foi corroborado por outros testemunhos orais recolhidos de decisores e funcionários, também do Ministério da Educação, mas do organismo especialmente criado para instalar e gerir o Serviço Cívico Estudantil, na altura "adversários de Hespanha" no interior do ministério, como o coronel João Corte-Real de Araújo Pereira.
Em suma: não houve campanhas de alfabetização do MFA; não houve unanimidade no PCP sobre o Serviço Cívico Estudantil; esta ocorreu na confluência de três áreas políticas diferentes, nenhuma delas um bloco homogéneo. Professora universitária - ISCTE

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