Torne-se perito

A minha Lisboa não é a tua Lisboa

Cada um tem a sua cidade. A que percorre, a que imaginou, a que reinventou. Uns não saem do seu bairro, outros guiam-se por sons e cheiros, uns gostam de ruas labirínticas, outros de avenidas geométricas a prometer modernidade, uns sabem o que é dormir na rua, outros sabem o que é ser adolescente e sonhar com a cidade lá longe. O P2 ouviu seis histórias de pessoas cujas Lisboas, se calhar, raramente se cruzam.
Alexandra Prado Coelho (texto) Enric Vives-Rubio (fotos)

Ana Sousa28 anos
Cabeleireira
No percurso do seu cabeleireiro, num primeiro andar perto da Calçada do Combro, até ao Chiado, ali mais à frente, é capaz de cumprimentar "umas 100 pessoas". Ana Sousa vive em Lisboa como quem vive numa aldeia. Não tem carro, anda sempre a pé, mora no Príncipe Real, a pouca distância do sítio onde trabalha, e conhece toda a gente. E à noite, quando sai, fica pelo Bairro Alto.
Ter nascido em Cascais e ter vivido em Carcavelos é irrelevante para esta história. Desde pequena que vinha passar temporadas com os avós a Lisboa, já então entre o Chiado e o Príncipe Real. E era daqui que gostava. "Nunca me identifiquei com Cascais. Aqui havia mais coisas, mais movimento, é maior, não vês o fim à coisa." Viu muitas mudanças desde o tempo em que ia com o avô à noite passear a cadela e descia até à Baixa, para comer gelados na pastelaria Suíça. O incêndio do Chiado acabou com a florista que a avó tinha na Rua Garrett, e acabou com muitas outras coisas. Mas viu depois muita gente a chegar, a querer abrir lojas, bares. "Lembro-me da Rua do Norte quando não havia nada. Havia milhares de lojas que estavam fechadas e abriram." Não lhe falem em centros da cidade a esvaziarem-se. "Só vejo pessoas a investir, portas a abrir."
Aos 16 anos mudou-se para Lisboa e começou a trabalhar num cabeleireiro na Rua do Crucifixo, depois mudou-se para a Rua do Norte e esteve ainda no espaço Amo-te Chiado. Agora está aqui - rodeada por enormes fotografias de Marilyn e um cartaz com um desenho dos livros da Anita - neste andar que "caiu do céu". "Cheguei aqui, vi este espaço, com esta luz que tem - ainda não tinha entrado e disse: "Fico!"."
Ainda teve uma proposta para abrir um espaço na Avenida de Roma, mas recusou. As Avenidas Novas não lhe dizem nada. "Aquela parte das avenidas - aquilo é do tempo do Salazar, não é? - é a zona dos avós. Tudo o que é para ali já se dispersa um bocado." E se aqui é mais do género de "virem para a janela a gritarem "ó Mariiiiiaaaa!"", tem ideia que nas Avenidas Novas "são mais de estarem nos cafés, a falar de livros".
Acha que o Bairro Alto e o Chiado vão continuar a crescer. "Agora vão abrir o Museu do Design no Adamastor. Há imensas empresas a quererem investir aqui. Quando se investe [na recuperação de um edifício], automaticamente tem-se as casas alugadas. Isto vai ter uma continuidade do Chiado até Alcântara."
Mas se, por razões de trabalho, vai a outras partes da cidade, Lisboa ainda é capaz de a surpreender. "No outro dia fui [trabalhar numa sessão de fotografias] no [Hotel] Sheraton. Estás lá em cima, vês aquela vista e é tipo "ooohhhh". Não estou nada habituada a ter aquela visão."

Alexandre Cortez46 anos
Músico
Quando era adolescente, no Algueirão, "o comboio era uma linha de fuga para a cidade, mas também uma fronteira". Lisboa ainda ficava demasiado longe para Alexandre Cortez e os amigos. "Há uma grande diferença entre viver em e pertencer a. Nunca pertenci àquele espaço, não criei raízes, e ainda hoje me sinto um estranho lá." Ao contrário, em Lisboa, para onde veio estudar na Faculdade, "ao fim de um ano ou dois já [se] sentia lisboeta de corpo e alma".
Apesar disso, foi o subúrbio que permitiu que criasse laços muito fortes com esses amigos de juventude, quando todos passavam "grande parte do tempo a pensar como fugir dali" - e foi daí que nasceram os Rádio Macau. Foi também nesses anos (teria ele uns 17) em que o comboio ainda era uma fronteira que, uma noite, um professor de Filosofia o trouxe, com mais alguns amigos, pela primeira vez a um bar de Lisboa. "Fomos ao Jamaica e foi uma imagem que me marcou imenso." Anos mais tarde, um dos primeiros concertos dos Rádio Macau foi no vizinho Tóquio, também no Cais do Sodré.
Nunca imaginou que, aos 46 anos, se tornasse um dos sócios do Music Box, que abriu no ano passado no antigo Texas Bar, ao lado do Jamaica e do Tóquio. Mas o bar estava fechado há bastante tempo, e Alex e os sócios decidiram arriscar numa zona que "tem um carisma fortíssimo e uma enorme carga de história". No meio do charme decadente dos velhos bares abriram um espaço novo. "Apesar de termos cortado radicalmente com o passado, decidimos guardar para memória futura registos que tivessem a ver com o antigo Texas, entrevistámos antigos clientes, pessoas da zona."
E ali estavam, no meio de histórias de marinheiros, prostitutas e espiões, quando perceberam que é preciso mexer com cuidado numa zona destas se não se quer destruir o delicado equilíbrio em que o ambiente ainda se mantém. "Abdicámos da presunção de mudar alguma coisa. A haver mudança ela teria que surgir espontaneamente." Era preciso "não quebrar as regras, interferir o menos possível". Mesmo assim, numa zona que se arrisca a transformar-se num deserto quando os idosos que ali moram morrerem, perceberam que "as pessoas sentiam uma necessidade de renovação, sentiam na pele essa decadência", e que hoje de certa forma lhes agradecem terem trazido sangue novo para o velho Cais do Sodré.

Lídia Jorge61 anos
Escritora
Era uma jovem estudante universitária recém-chegada do Algarve e instalada num lar estudantil na Avenida das Forças Armadas. Nesse início dos anos 60 subia muitas vezes a Avenida Estados Unidos da América e vinha até à Avenida de Roma. Para Lídia Jorge, era esta a Lisboa moderna e cosmopolita. Apaixonou-se pela zona, e é ainda aí que vive hoje.
Sentia que as Avenidas Novas, com "a sua geometria, a disciplina", eram "uma zona de futuro". "Talvez tenha a ver com a minha história, com ser uma parvenue, aquela que chega depois". Lisboa era, para uma jovem algarvia, um motivo de fascínio. "Era o sítio do mundo moderno, onde se podia fazer uma experiência de encontro com a cultura e a História muito diferente da que se fazia em Faro, onde os horizontes eram muito limitados".
Lisboa nos anos 60 era ainda uma cidade muito provinciana. Mas Lídia Jorge não a via assim. "Sentia-me numa grande capital. Para mim era um mundo aberto, eram horizontes que se rasgavam". Subia até à Avenida de Roma e juntava-se numa tertúlia organizada pela professora Maria Aliete Galhoz (de Boliqueime, tal como ela) e outras alunas na pastelaria Capri.
Os bairros populares, longe da geometria rigorosa das grandes avenidas, não a atraíam. "Era como se fosse outra vez a província. Não conseguia apreciar, não tinha distância, achava que tinham demasiadas marcas do passado." Tinha, confessa hoje, "a altivez do olhar provinciano", e roupa estendida e assadores de sardinhas no meio da rua eram para ela "subdesenvolvimento".
Depois havia a vida cultural. "Aos fins-de-semana apanhávamos o 31 e íamos à Baixa assistir a espectáculos. Vivia-se com muita intensidade em torno do pouco que tínhamos." Ficou fiel às Avenidas Novas, uma zona onde "se pode manter o equilíbrio entre a vizinhança e o anonimato". Fez parte do grupo de cidadãos que há alguns anos se mobilizaram para impedir que fosse construído um viaduto que transformaria as avenidas "numa espécie de auto-estrada" para os carros "voarem" entre a Ponte Vasco da Gama e a 25 de Abril.
E viu a zona envelhecer. "No final dos anos 80, princípio dos 90 sentiu-se nitidamente uma alteração". Muitos jovens partiram, há muitas casas fechadas, prédios com cada vez menos moradores e mais escritórios. Mas Lídia Jorge continua fiel. Gosta até do vento. "Gosto de um pouco de aspereza, do facto de ser um pouco inóspito. Aqui faz vento - acontece uma coisa na cidade."

José Manuel Fernandes44 anos
Psicólogo
Um tumor deixou-o cego quando tinha pouco mais de dois anos. Quem cega tão cedo não tem memória das imagens que terá visto e que "tendem a perder-se com o tempo". Há apenas uma (mas ele não sabe se é uma memória real ou construída por tantas vezes ter ouvido a história) de um rasto de avião no céu - a última imagem que teria visto, e dito à mãe, antes da operação de que sairia cego.
Aprendeu, por isso, a conhecer Lisboa sem a ver. De Benfica, onde viveu grande parte da sua vida (hoje vive na Pontinha, com a mulher, que tem uma visão de cinco por cento, e as duas filhas gémeas, de três anos, sem quaisquer problemas visuais), à Zona J de Chelas, onde trabalha, como psicólogo na Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal. Mas se lhe perguntarmos de que zonas gosta mais, José Manuel Fernandes não hesita: "Sempre gostei muito de História, por isso gosto das zonas históricas, dos bairros antigos." O Castelo de São Jorge, por exemplo. "Tenho a noção de que se sobe até lá acima, que nos podemos encostar às muralhas, há aquele ventinho que nos dá na cara."
Se para outros é importante o que se vê, para os cegos, explica, "é importante o ambiente, os ruídos, as subidas, as descidas". E, curiosamente, as zonas antigas dão mais pistas. "Sei perfeitamente perceber quando estou nas célebres calçadas antigas de Lisboa." Para circular no dia-a-dia, "a geometria é importante" e, nesse aspecto, "o Marquês de Pombal ajudou muito os cegos". Mas o Marquês não planeou Chelas, e o local, cheio de prédios às cores, onde José Manuel Fernandes trabalha, é confuso mesmo para quem vê. "Usamos o autocarro, que tem a paragem aí em frente", diz. Mas aqui não domina "uma área maior do que uns 50 metros para cada lado" - o suficiente para ir ao café, aos correios ou à farmácia.
No resto da cidade o que o atrapalha são todas as coisas que não detecta com a bengala: as cabines telefónicas-orelhão, os contentores, os painéis publicitários de pé (quando a bengala toca no pé, já a pessoa chocou com a parte de cima), os carros em espinha em cima dos passeios, a má sinalização de algumas obras, e claro, os cocós de cão que se encontram por toda a Lisboa. Outro problema são as colunas inclinadas que os arquitectos gostam de pôr em algumas estações - mais uma vez a cabeça detecta-as antes da bengala.
Nunca recusa ajuda, apesar de às vezes as pessoas não saberem exactamente como ajudar. "Há os que querem pegar em nós ao colo, há os que seguram na ponta da bengala como se fosse uma trela, mas também há cada vez mais gente que sabe como fazer." Apesar disso, sabe que "ajudam sempre mais num lindo dia de sol, do que num dia de chuva e vento" cheio de poças nas ruas.

João Pedro Rodrigues40 anos
Realizador de cinema
Aos 20 anos saiu de casa dos pais e foi viver para a dos avós paternos, na Avenida Estados Unidos da América. É com essa casa, onde continua a viver, que João Pedro Rodrigues mantém "uma relação muito forte, quase umbilical". O apartamento, "construído no final dos anos 50, à la Corbusier" e que os avós praticamente não modificaram, deixando até a mobília original da época, já serviu de cenário à primeira curta-metragem de João Pedro, Parabéns, e ao filme Corte de Cabelo de Joaquim Sapinho. Nos filmes seguintes saiu de casa... mas não muito. "O Fantasma tem duas cenas filmadas na minha rua e foi quase todo filmado no meu bairro. E no Odete, o interior da casa de Odete é a cave de minha casa."
Percorre a mesma cidade que outros realizadores percorreram antes dele. Paulo Rocha, por exemplo, nos Verdes Anos - "há um plano picado sobre a Isabel Ruth e o Rui Gomes, a passearem num jardim, que podia ter sido filmado da janela de minha casa". E sente essa "cidade moderna dos anos 50/60" como um território seu, como já foi de outros.
Há outros territórios com os quais não tem essa relação umbilical, mas que lhe interessam, sítios onde sente que "há histórias escondidas (ou segredos) para contar". É uma cidade que está ao mesmo tempo fora e dentro dele. "São sítios que estão na minha cabeça à espera que eu descubra essas histórias escondidas." Alguns "não têm nada de especial"; outros "são uma espécie de fronteira entre a cidade e o campo - a cidade foi crescendo e invadiu o campo, as quintas, as hortas, os baldios que conseguem resistir meio estraçalhados pela invasão urbana". Alguns poderão olhar para eles como vazios a convidar à construção de mais prédios. João Pedro vê-os como sítios "que escondem mistérios, que escondem outros tempos". Dramáticos por serem "uma espécie de ruínas que guardam as memórias de outras vidas". Por isso no próximo filme vai percorrer "as azinhagas labirínticas de Chelas".
Acha que esta sua cidade (diz que é "fundamental, mesmo fundador" que os seus filmes se passem em Lisboa), pode não ser muito reconhecível para os outros. Mas é "uma Lisboa pessoal, quase confessional".

José João Duarte António49 anos
Desempregado
Talvez o vejam como um arrumador de carros. Mas Duarte - é assim que lhe chamam - vê-se mais como um "gestor do espaço público". É essa a sua função, na zona da Feira da Ladra: dar alguma ordem aos carros que, sobretudo nos dias de feira, tentam desesperadamente encontrar um lugar. Chega entre as nove e as dez da manhã, organizou-se com os outros arrumadores. "Há espaço para todos, há respeito, cumprimos horários."
É - as palavras são dele, mas é verdade - "uma pessoa afável". "Não colido com as pessoas, não tenho que colidir. Se não dão dinheiro tento perceber porquê, em que situação posso ser útil. E se elas já me estão a ajudar porque é que vou colidir com elas? É uma contradição, não é?" Além disso, acha que o que faz ali tem também uma "função pedagógica". "Quando trabalhei na Suíça [onde viveu nove anos] aprendi que quando se presta um serviço recebe-se uma gratificação. Mas aos portugueses ainda lhes custa meter a mão ao bolso."
Esta é a Lisboa de um homem
que nasceu em Santarém há 49 anos, aos 10 já trabalhava como vidreiro na Marinha Grande - isto antes do resto da vida, que foi "sempre a fugir à heroína". Em 1998 chegou à estação de Santa Apolónia "sem destino, na esperança de dar um sentido à vida". Guardou o saco num cacifo. E teve sorte. Encontrou um amigo que não via há 20 anos e conseguiu um trabalho na estação. Foram três anos como conferente de mercadorias. Quando se fartou de ser eventual deixou o trabalho.
Sem trabalho, sem casa, com "a heroína a levar o dinheiro todo", começou a dormir na estação. "Foi a parte mais difícil. Dormir na rua é muito mau. É perigoso, cria vícios, doenças, altera o estado de espírito". Às vezes "é preciso deixar a manta para trás e depois ela já lá não está". E há as pessoas que passam e que "são frias", e olham com um "complexo de superioridade que é evidente".
Nunca pensou que ficaria "agarrado à rua" como outros que conheceu. Esteve atento, e quando apareceu a oportunidade de ir dormir para um centro (onde agora dorme, em Xabregas) e entrar num programa de metadona, não a deixou escapar. Ainda fez o nono ano, mas o trabalho não apareceu. "Pensei: "Vou arrumar carros, é uma alternativa e não faço mal a ninguém"." Vive disso. Não recebe o rendimento mínimo - "há muitos entraves, muita burocracia, não é para todos" - mas o dinheiro que ganha dá para "sobreviver um dia de cada vez". Espera vir a ter "um trabalho, uma casa, uma companheira" - e já só lhe falta o trabalho. Está "farto de espaços fechados", e gostava de trabalhar em jardinagem. "Vou tentar, e algum dia vou conseguir. Ainda há algum sonho em mim, e vou guardá-lo, vou segurá-lo."

Sugerir correcção