Quem tem medo dos estudos feministas?

Em casa, quem cozinha? Quem limpa? Quem cuida das crianças? Quem tem menos tempo para dedicar à carreira? Quem recebe salários mais baixos? Da política à sociologia, passando pela docência: histórias que vêm dizer, afinal, o que ainda falta fazer pelos direitos das mulheres. No Ano Europeu da Igualdade para Todos, abre em Coimbra o primeiro mestrado em Estudos Feministas

a Quando está de serviço, no hospital onde trabalha, em Braga, e se estiver acompanhada por um colega homem, ela é sempre a enfermeira e ele é sempre o "doutor". As pessoas não têm dúvidas, conta Filipa Martins, uma jovem médica de 26 anos. "Eu sou a enfermeira e o meu colega, seja médico ou enfermeiro, é o doutor."Quando entram numa loja, a professora universitária da Universidade de Coimbra (UC) Maria Irene Ramalho e o marido, o sociólogo Boaventura Sousa Santos, são cumprimentados de forma diferente. Dizem-lhes: "Como está Sr. Professor, como está Sra. Doutora?" E têm o mesmo grau académico e são os dois investigadores.
Maria de Lurdes Pintasilgo, a única mulher que até hoje chefiou um Governo em Portugal, não teve direito a um funeral com honras de Estado. "Como se explica?", questiona Maria Irene Ramalho.
Em Portugal, as leis são paritárias no que toca aos direitos das mulheres, mas será que as práticas também o são ou estão perto de sê-lo?
As duas professoras universitárias que criaram o mestrado em Estudos Feministas na UC, o primeiro em Portugal com esta designação tão "política", entendem que não. Foi, aliás, com esta convicção e também por acreditarem que a "reflexão" pode conduzir à "emancipação" das mulheres que o criaram.
O programa de estudos vai começar a funcionar já este ano, no Ano Europeu da Igualdade para Todos. E tem um objectivo: não a "inversão dos papéis" na sociedade, mas a "cidadania plena das mulheres, o que ainda não existe", defende Maria Irene Ramalho, directora do programa.
Estas professoras universitárias são Adriana Bebiano e Maria Irene Ramalho. São feministas no Portugal do século XXI, investigadoras, casadas com professores universitários e activistas, não na rua, mas na sala de aula. Não têm dúvidas: ainda há muitas lutas pela frente no que respeita aos direitos das mulheres.
Quais são, hoje, as lutas do feminismo em países com leis paritárias, como Portugal?
"Há mulheres que não questionam, ainda hoje, a violência doméstica sobre elas", diz Adriana Bebiano (46 anos), coordenadora executiva do mestrado.
"Numa família com pouco dinheiro, quem é que vai estudar? O filho ou a filha?", pergunta Maria Irene Ramalho (65 anos).
"Num casal de académicos, quem é que vai buscar os filhos à escola? Quem cozinha? Quem limpa?", prossegue Adriana Bebiano.
"Quem é que publica mais porque tem mais tempo para escrever?", questiona Maria Irene Ramalho que, das duas vezes em que foi estudar para o estrangeiro, precisou da autorização do pai e, mais tarde, mas ainda antes de 1974, da do marido.
"É muito difícil uma mulher chegar a uma posição de poder. As [próprias] mulheres terão tendência a votar num homem...", continua Maria Irene Ramalho.
"O trabalho não é pago da mesma forma...", alerta.
De facto, na Europa, as mulheres recebem, em média, menos 15 por cento do que os homens no desempenho das mesmas funções e o desemprego afecta, globalmente, mais as mulheres, segundo dados da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.
Feminismo em casa
O feminismo não é, porém, uma atitude que se tenha apenas publicamente. Estas professoras são feministas dentro da sala de aula e em casa também. Porque ser-se feminista pressupõe uma atitude de inconformismo que ultrapassa o plano teórico e invade tudo: o amor, a família.
"É uma atitude política que também se tem em casa e que passa pelos afectos e por todos os domínios da nossa vida", diz Adriana Bebiano, garantindo, porém, que, quando se casou, não deu ao marido nenhum "formulário".
Sem entrar nos pormenores da sua vida privada, Adriana Bebiano diz que "tudo tem que ser negociado entre o casal". E porque a própria "masculinidade" também "mudou", "já se vêem homens a assumir tarefas" domésticas.
Mas é Rui Bebiano, 54 anos, professor de História na UC e marido de Adriana Bebiano , quem é peremptório sobre a atitude em casa: "Se dividimos as tarefas em casa? Completamente!" Embora assuma que não gosta nada de "ismos", diz que partilha "o empenho das lutas das mulheres". E tenta explicar a sua dificuldade com os "ismos" em geral e com o feminismo em particular: "Ao feminismo radical, que quer inverter as posições [colocar a mulher numa posição superior e o homem numa inferior], reajo com alguma pele de galinha. Rejeito. Não me revejo no feminismo quando o tal "ismo" implica uma doutrina no sentido radical, mas revejo-me como prática de cidadania." Ele já deu o "passo" de não dizer Homem para se referir à humanidade.
Para o sociólogo Boaventura Sousa Santos, 66 anos, ainda há muito que batalhar no que toca, por exemplo, à "divisão sexual do trabalho": "A mulher tem o chamado "segundo turno", o do trabalho doméstico desproporcionado. São as mulheres que assumem o fardo de cuidar dos doentes, dos familiares, são as protagonistas da sociedade providência", alerta.
E, para o sociólogo só "pela educação, pelas políticas feministas e pela pedagogia" é que se "consegue a consciencialização e a mudança": "Há muita gente que pensa que mestrados como o da UC não são precisos porque está tudo na lei. Mas ainda há muito para fazer", diz.
Maternidade e carreira
Os rostos desta história podiam ser outros. Se recuássemos mais de 30 anos, ainda antes do 25 de Abril, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa escreviam no livro "Novas Cartas Portuguesas", censurado em 1972 por atentado à moral pública e pornografia: "Tudo terá de ser novo... E o problema da mulher, no meio disto, não é o de perder ou ganhar, é o da sua identidade."
Passaram-se décadas. O que dizem hoje as jovens portuguesas que já cresceram no Portugal depois de Abril?
"Ainda há discriminação", diz Filipa Martins.
Joana Amaral Dias, 34 anos, psicóloga e militante do Bloco de Esquerda, também admite que se conquistaram alguns direitos, mas conidera que muitas das esperanças em que as mulheres de Abril acreditaram caíram por terra: "Os combates dos anos 60 e o 74 português permitiram às mulheres o ingresso nas faculdades, desde que continuassem a cuidar da casa e dos filhos."
Hoje com 60 anos, o pai de Joana Amaral Dias, o psiquiatra Carlos Amaral Dias, recorda que fez parte da geração que acompanhou os movimentos feministas e que as mulheres encontraram aliados na sua geração, mas admite que era uma "geração paradoxal", porque ainda vivia rodeada de hábitos machistas. O que motivava sentimentos contraditórios: "Por exemplo, eu desejava que fosse a minha mulher a cozinhar, mas sabia que isso não era justo."
O problema, para jovens como Filipa, é precisamente o de conciliar os "horários difíceis e exigentes" do trabalho com a atenção que os filhos requerem: "No hospital onde trabalho, as mulheres já conquistaram lugares importantes, mas sempre com esforço a dobrar. Porque têm que conciliar tudo, a vida de casa, a vida do hospital... Os homens médicos deixam tudo a cargo das mulheres e das empregadas...", diz.
Por isso, garante que "jamais" irá casar e ter filhos enquanto ainda estiver a tirar a especialidade em anestesiologia. "Não conseguiria conciliar, mas, se calhar, se fosse homem não me importava de casar e de ter filhos já!", afirma.
Nasce-se mulher?
É por acreditarem que, mesmo depois de Abril, ainda há lutas a travar que aquelas professoras não desistem. Mesmo que a área de estudos seja ainda encarada com desconfiança. Isso ainda as motiva mais. "As reacções hostis aos Estudos Feministas, que vêm tanto de homens como de mulheres, fazem-nos crer que são necessários", nota Maria Irene Ramalho.
Ao contrário, portanto, do que advoga o pós-feminismo, segundo o qual as lutas feministas já não fazem sentido, porque a igualdade foi alcançada, as professoras que criaram o mestrado em Coimbra defendem que o feminismo continua "muito actual".
E o nome do mestrado da UC, Estudos Feministas, que para o ano abre como doutoramento, diz da sua diferença: "É o estudo das mulheres do ponto de vista das mulheres, com uma abordagem no sentido da mudança das práticas culturais e sociais", explica Adriana Bebiano.
Mas que reflexões motivarão os Estudos Feministas? E de que forma podem conduzir à emancipação?
Entre outros seminários, no mestrado da UC, que vai começar a funcionar já em Setembro (www.uc.pt/geaa) estudar-se-á Teorias do Feminismo, no qual se abordará a controvérsia sobre o essencialismo, corrente que defende a existência de uma essência feminina.
"Há muitos feminismos. Pessoalmente, acho que não há nada que nos distinga, a não ser diferenças biológicas e sexuais e que as mulheres dão à luz e os homens não", diz Maria Irene Ramalho, que se assume como feminista construtivista.
Ao contrário do essencialismo, o construtivismo defende que nascemos "pessoas" e nos tornamos, mais tarde, homens e mulheres - "Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres", escreveu Simone de Beauvoir no livro "O Segundo Sexo" (1949).
Terá a Medicina o mesmo entendimento acerca da problemática? Martin Lauterbach, neurologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, afirma que provavelmente o sexo terá alguma influência no comportamento das pessoas enquanto homens e mulheres: "Mas é muito difícil dizê-lo, porque há muitas variáveis. Além das diferenças biológicas, a experiência social é muito importante na formação da personalidade."
"O importante é problematizar", diz Maria Irene Ramalho, chamando mesmo a atenção para o "exemplo" de uma "feminista essencialista" que admira - Maria de Lurdes Pintasilgo. Ela, "estadista de invulgares qualidades a nível mundial, foi apenas tolerada na política portuguesa": Como se explicaria, "de outra forma", que não tivesse tido "honras de Estado no funeral?", questiona Maria Irene Ramalho.
Candidata à Presidência da República em 1986, Pintasilgo foi a única mulher que chefiou um Governo em Portugal, entre Agosto e Dezembro de 1979. E não foi eleita, mas nomeada pelo então presidente Ramalho Eanes.
Para estas feministas que vivem em Portugal, onde o Presidente da República foi sempre homem e onde as mulheres ocupam menos de um quarto dos lugares nos parlamentos nacionais dos países membros, serão as quotas defensáveis?
"Teoricamente sou fortemente contra, é uma ideia repugnante, mas reconheço que na prática podem ter a sua utilidade", defende Maria Irene Ramalho.
"Políticos, comentadores e quejandos, que nunca abrem a boca para defender os direitos das mulheres e combater activamente as discriminações de que são alvo, foram os que mais interpretaram as quotas como anti-feminismo, "um atentado de menoridade às mulheres"...", ironiza Joana Amaral Dias, defensora acérrima das quotas e feminista convicta que, quando esteve no Parlamento, foi apelidada de "Barbie do Bloco"... Uma "estereotipização", nas palavras da própria, que se alastra a outros domínios.
Há inúmeros exemplos na literatura. "A mulher, pela simples constituição do seu cérebro, é adversa ao estudo e à ciência", escreveu Eça de Queirós. Ou: "Nunca se deve confiar numa mulher", de Homero. "Ao longo dos tempos, os autores insistem na imagem estereotipada da mulher, de maliciosa, inconstante... As coisas são diferentes hoje, mas muitos dos preconceitos sobrevivem, mesmo em Portugal, não tanto nos discursos literário e científico, mas sobretudo no domínio privado", diz Anabela Galhardo Couto, professora no mestrado em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta, criado há cerca de uma década e pioneiro na área.
Olhares desconfiados
O campo de estudos não é novo, há vários mestrados tangentes no país, mas chamam-se Estudos sobre as Mulheres, como o da Aberta, ou como o da Universidade Nova, Estudos sobre a Mulher/ As Mulheres na Sociedade e na Cultura.
Apesar de a designação Estudos Feministas ser "politicamente mais empenhada" e Estudos sobre Mulheres "mais neutra", todas as investigadoras se queixam do mesmo: é uma área em expansão, mas ainda depreciada.
"É um campo do qual se diz: "É bom para as mulheres", com um certo desprestígio... O que espelha um pouco o sexismo que ainda existe", conta Anabela Galhardo Couto.
A coordenadora do mestrado da Aberta, Teresa Joaquim, admite que a designação escolhida em Coimbra - Estudos Feministas - "implica alguma ousadia", porque ainda existe uma "ideia deturpada do feminismo". Mas - e diz que só fala a título pessoal - defende que o mestrado, criado na Aberta em 1995, também persegue "objectivos políticos".
O essencial, diz Teresa de Almeida, coordenadora do mestrado na Nova, é que, "sejam estudos sobre mulheres ou estudos feministas", exista "consciência da desigualdade e da intervenção cívica a favor dos direitos das mulheres".
Curiosamente, nunca se matriculou um homem no curso da Nova, ao contrário do que acontece na Universidade do Porto, onde a professora Ana Luísa Amaral garante já ter sido obrigada a limitar inscrições na cadeira Introdução aos Estudos Feministas devido ao interesse crescente tanto da parte de alunas como de alunos.
Ana Luísa Amaral: professora, feminista e também poeta. Ou poetisa? "Houve tempos em que preferia poeta, entendia que poetisa era menor, mas cada vez mais me convenço que é preciso dignificar a palavra", diz, então,
a poetisa.

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