A narrativa neoliberal sobre a globalização

A realidade tem vindo a desmentir as teorias do fim da História

Terminou mais uma cimeira do G8, onde se reuniram os líderes das oito maiores potências mundiais. Fora do recinto, reuniram-se cerca de 100 mil manifestantes que se batem contra a presente globalização e por formas de globalização alternativas. Na versão actualizada de um livro (Globalism: Market Ideology Meets Terrorism) que, em 2003, recebeu um prémio da Associação Americana de Ciência Política, Manfred Steger faz uma distinção entre "Globalização" e "Globalismo". A primeira refere-se aos processos sociais associados à intensificação da interdependência global dos vários países, economias, culturas, etc., e que têm sido descritos pelos estudiosos de diferentes formas. O "globalismo" refere-se à narrativa ideológica sobre a globalização que associa tais processos aos valores e conteúdos do neoliberalismo.A narrativa neoliberal sobre a globalização assenta em seis grandes teses centrais, que o autor ilustra com abundante recolha de material empírico. Primeira tese: a globalização é sinónimo de liberalização e integração global dos mercados. Por exemplo, na Business Week (13/12/1999) argumentava-se assim: "Globalização é sobre o triunfo dos mercados sobre os governos. (...) A verdade é que o peso do Estado na economia tem declinado praticamente em todo o lado." Por um lado, a narrativa neoliberal da globalização rejeita modos alternativos de regular a economia, o que pode ser concebido como uma certa deriva totalitária. Por outro lado, ao contrário do que sugere a metáfora da "mão invisível", a liberalização mundial dos mercados tem dependido muito mais da engenharia política do que da acção espontânea das forças do mercado - recorde-se, nomeadamente, a aplicação do "consenso de Washington". Além disso, tal visão escamoteia o carácter multidimensional (isto é, não apenas económico) da globalização.
Segundo, tal narrativa apresenta a globalização como "inevitável" e "irreversível", dependente da integração mundial dos mercados e da evolução tecnológica (por exemplo, Thomas Friedmann, The Lexus and the Olive Tree, p. 407). Para quem passou décadas a criticar o marxismo pelo seu determinismo económico, como sempre fizeram (e bem!) os liberais, é preciso sublinhar que estamos perante uma visão claramente determinística da história. E que encerra uma total subversão da democracia: os governos, os partidos, os movimentos sociais não têm outra escolha senão ajustar-se ao processo "inevitável" da globalização. Daqui decorrem as tentativas de neutralizar as forças alter-globalização, bem como os esforços para despolitizar o discurso sobre o fenómeno. Além disso, justificam-se assim as medidas de austeridade conduzidas pelos governos. Finalmente, tal tese envolve uma visão ocidentalocêntrica (tipo Fukuyama e o "fim da História"): as nações mais avançadas no processo da globalização neoliberal como que lideram a evolução da humanidade...
A terceira tese é a de que ninguém pilota a globalização (por exemplo, Thomas Friedmann, Idem, pp. 112-113): No one is in charge... Esta é, porém, uma ideia falsa: basta relembrar o papel das grandes potências, com os EUA e o Reino Unido à cabeça, bem como das organizações internacionais (FMI, Banco Mundial, OMC, etc.) na implementação da globalização neoliberal. O programa neoliberal associado ao "consenso de Washington", que foi elaborado por um conselheiro do FMI nos anos 1970, tem orientado muitos governantes do G8 e o FMI, nomeadamente quando esta organização exige a aplicação de tal programa como moeda de troca para a concessão de empréstimos aos países em dificuldades.

Aquarta tese é a de que a globalização beneficia toda a gente. A expansão do comércio mundial será uma forma adequada de aumentar a riqueza e o bem-estar dos seres humanos à escala mundial. Terá até beneficiado bastantes pobres de países do Sul. Porém, os resultados da globalização tal qual tem vindo a ser conduzida estão à vista: taxas de crescimento do PIB inferiores às do período do capitalismo regulado ("30 anos gloriosos"); aumento das desigualdades à escala mundial, quer no seio dos países, quer entre países (Relatório da ONU no PÚBLICO, 15/1/06); face aos anos 1960, nas grandes potências mundiais, os "salários recebem (hoje) a menor parcela do PIB de sempre" (DN, 28/11/06). Ou seja, a globalização tem beneficiado sobretudo as grandes empresas transnacionais e o capital financeiro e bastante menos as populações, sobretudo as dos países mais desenvolvidos. Tanto assim é que o próprio FMI (PÚBLICO, 6/4/07) e certos especialistas (DN, 25/5/07) alertam para os riscos que o processo corre, a continuar nestes termos. Sarsfield Cabral (PÚBLICO, 21/5/07) alertava para uma possível "revolta da classe média" e recomendava "subsídios aos salários baixos".Associada às ideias sobre o fim da história, a quinta tese associa a globalização à difusão da democracia à escala mundial. Liberdade, mercados livres, comércio livre e democracia são apresentados na prática como sinónimos. A sexta tese, isto é, a globalização requer a "guerra ao terrorismo", aponta para a necessidade de se pôr o complexo militar-
-industrial ao serviço da globalização. A realidade tem vindo a desmentir as teorias do fim da História e o tremendo fracasso da invasão do Iraque veio evidenciar que a democracia dificilmente se impõe com a força das armas.
É precisamente porque a globalização tem tido uma clara pilotagem política ao nível mundial que não posso concordar com Sarsfield Cabral (PÚBLICO, 11/6/07), quando este acusava os manifestantes alter-globalização de se terem dirigido a "alvos errados". Mais, tendo em conta os maus resultados da globalização neoliberal, também me parece errado reduzir as correntes alter-globalização a mero "folclore": porventura mais do que nunca, torna-se necessário inflectir a globalização tal como a temos conhecido. Professor de Ciência Política (ISCTE)

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