Torne-se perito

Aurélio Pereira, duas décadas a caçar talentos

Se o mundo procura futebolistas com arte, o Sporting sabe formá-los. E tudo começa num homem cujo "defeito de fabrico" é ver miúdos a jogar à bola

Paulo FutreTransferiu-se em 1984 para o FC Porto a custo zero

"Aos nove anos, era impressionante a sua vontade louca de jogar. Um vulcão. Nunca vi ninguém naquela idade que gostasse tanto de jogar futebol."

Luís FigoEm 1995, rumou ao Barcelona por 1,8 milhões de euros

"Foi ele que veio ter connosco. Era muito franzino, mas com a bola nos pés parecia que a tinha nas mãos, tal a arte. Muito lúcido, muito objectivo, com um enorme sentido de responsabilidade, incomodava--se muito quando os outros não faziam as coisas bem feitas."Simão Sabrosa
O Barcelona pagou 15 milhões de euros em 1999

"Uma escola primária foi campeã regional de Vila Real e quando fomos ver o primeiro jogo percebemos porquê: um miúdo chamado Simão, dez réis de gente, mas com uma velocidade incrível e um potencial fantástico."

Hugo VianaValeu 12,5 milhões de euros
quando viajou, em 2002, para o Newcastle

"Apareceu nas selecções de Braga, ao lado do Custódio. Já evidenciava as suas características actuais: bom passe, capacidades de organizador, classe, frieza."Quaresma
O Sporting encaixa 8 milhões de euros em 2003, na transferência para o Barcelona

"Fomos ver o irmão, belíssimo jogador, mas o nosso observador reparou num miúdo das escolinhas. Era o Ricardo, chamavam-lhe "Ratazana". Vieram os dois para o Sporting."

C. RonaldoFoi para o Manchester United, em 2003, por 16,5 milhões de euros

"O Nacional da Madeira tinha uma dívidapara connosco [Sporting] de cinco mil contos (25 mil euros) e propuseram "pagar" com um miúdo de 11 anos de idade.
Veio à experiência e... só um cego não via! Tinha muito talento, mas isso há muitos. O que me impressionou mais foi ele dizer a outro, mais velho, durante um treino: "Tem calma, miúdo!". Essa capacidade de adaptação, essa personalidade forte, é a sua marca."

Nani25,5 milhões de euros para ir jogar no Manchester United

"Esteve para vir para o Sporting aos 11 anos, mas era complicado trazê-lo aos treinos e acabou por ficar no Real de Massamá, clube com que temos boas relações. Era muito franzino, mas cresceu e convenceu toda a gente no seu primeiro teste como juvenil. Excelentes capacidades físicas, técnicas, tácticas(aqui ainda vai melhorar) e não tem medo de jogar contra ninguém."

a O sector de formação do Sporting tem sido uma fábrica de talentos futebolísticos... e de dinheiro. As verbas encaixadas nas últimas duas décadas com a venda de jogadores chegariam praticamente para pagar o novo estádio Alvalade XXI - que custou pouco mais de 100 milhões de euros. E esta máquina, cada vez mais completa e profissional, tem um rosto: Aurélio Pereira, de 59 anos, 35 de funcionário de Sporting e mais uns quantos como atleta. Ele é o responsável pelo departamento de recrutamento dos escalões de formação do clube "leonino".
De Paulo Futre a Nani, passando por Figo, Simão, Hugo Viana, Quaresma ou Cristiano Ronaldo, só para mencionar os mais valiosos, Aurélio Pereira acompanhou o crescimento de muitos dos grandes nomes do futebol português. Não quer que se diga que foi quase um "pai" para eles em determinadas fases, mas assume que, noutros tempos, ser treinador era "fazer de tudo", nos treinos, fora deles, com jovens tantas vezes longe das suas famílias. E não há tempo nem fama que apaguem as relações de "respeito" que então se criaram.
Quando, em 1987, o sector de formação se organizou, Aurélio Pereira deixou de treinar (foi campeão nacional de juvenis nessa sua última época) e passou a trabalhar num gabinete. Ou não. Depressa percebeu que podia continuar a fazer o que sempre fez: observar jogos e topar talentos na rua, entre os miúdos que jogam futebol. "É um defeito de fabrico: se vejo algum atrás de uma bola, fico logo atento. Nas minhas corridinhas na Quinta das Conchas [no Lumiar, Lisboa] estou sempre de olho neles..."
Hoje, com a Academia de Alcochete, o Sporting é apresentado como um exemplo de excelência na área da formação de futebolistas. "A nossa missão é produzir jogadores que possam jogar na primeira equipa. E a missão está a ser cumprida", diz o responsável pelo recrutamento, que faz questão de citar o director da Academia, Pedro Mil-Homens: "Todos os dias trabalhamos para merecer o que o clube nos deu: a academia. É a melhor maneira de dizermos "obrigado"."
Com a fama (e o proveito, reconheça-se) já alcançado, não surpreende que sejam muitas as solicitações que chegam à secretária de Aurélio Pereira. "A informação é vital nesta área do recrutamento e ela aparece-nos das mais diversas formas - notícias, telefonemas, cartas - e vinda de todo o tipo de pessoas. É que o Sporting aproveita realmente a formação, dá oportunidades aos jovens jogadores." Há que estar atento, mesmo ao que passa fora de fronteiras, apesar de o Sporting só ter um jogador estrangeiro, do Brasil, na sua academia.
Não é só de futebol que estamos a falar. O acompanhamento dos jovens jogadores tem de se estender às mais diversas áreas, dos estudos à formação cívica, do ensino das regras do desporto até aos conselhos sobre nutrição, higiene, vícios. "Entre o sucesso desportivo e o insucesso às vezes vai apenas um pormenor", avisa Aurélio Pereira. E ele sabe do que fala. Ele viu crescer alguns dos melhores futebolistas mundiais das últimas décadas (ver fichas).
Mas também teve desilusões. Dani foi a maior de todas. "Mexeu um bocadinho comigo, porque era um talento, um grande talento." Entre o dia em que, de férias em Tróia, abordou um miúdo de sete anos que estava a dar toques na praia e a certeza, assumida pelo próprio, de que o jovem não tinha nascido para "jogar futebol por obrigação", foi todo um percurso. Dani nunca se tornou no grande futebolista que o seu talento justificava. "Custou-me, porque ele era especial..."
Um último olhar para a lista de "meninos de ouro" do Sporting constata um denominador comum: todos eles são tecnicamente muito evoluídos e jogadores de ataque. É uma tendência portuguesa? Talvez, mas é, fundamentalmente, uma questão de estratégia. Explica o caça-talentos de Alvalade: "A nossa selecção de jogadores passa muito pela relação com a bola. O talento não tem tamanho, baixos ou altos, conta é que sejam atletas. Vão aprendendo ao longo do caminho e, quando chegam a juniores, não podem ver o passe como último recurso, mas também não podem ter medo do um-contra-um." Dada a receita, fica a conclusão: "O mercado procura esses jogadores, os que têm arte, que dão prazer a quem está a ver. São esses que têm mais procura. E quem os tem é que os vende..."

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