Torne-se perito

Tarantino aos pés das mulheres

Quentin Tarantino está de regresso e está
aos pés das mulheres e as mulheres
que viram Death Proof ficaram aos pés dele.
Há por aqui um ícone para a causa feminista

a Quem associa Quentin Tarantino a violência e misoginia, devia ouvir ontem uma voz do Uzebequistão. "Obrigada senhor Tarantino, a partir de agora todas as mulheres da Ásia Central se sentem mais livres." Que esperavam, que Quentin não tivesse chegado ao distante Uzebequistão? E pouco faltou para a senhora levantar o punho. A roupa e o cabelo da jornalista até davam para fantasiar, imaginar uma cena muito "o poder às mulheres", à la anos 70, a encerrar um filme de acção com perseguição de carros, sangue e algum sexo, como há 30 anos atrás num cinema de sessões duplas, com cópia riscada, aos saltos e tudo... Muito de acordo, aliás, com o que se acabava de ver: Death Proof, o novo filme do realizador de Kill Bill.É certo que, em Death Proof, até as mulheres erguerem o punho - no caso específico, até cerrarem os punhos para os atirarem de encontro a uma cara masculina -, elas penam. São perseguidas por um "duplo" de cinema de cicatriz na cara que se entusiasma quando espeta o carro de encontro aos carros guiados por miúdas. Quando as amolga e desmembra no embate com o metal. Dêem carros e raparigas a Quentin Tarantino, realizador e argumentista, e ele também faz boom?
Talvez haja algo de Quentin no duplo Stuntman Mike (Kurt Russell). Que é, afinal, um fracote, um impotente. Kurt Russell é magnífico a incorporar esse pesadelo masculino, uma personagem escrita, afinal, por quem se baba de admiração perante o mundo das mulheres. É o caso de Quentin, garante o contingente feminino do cast de Death Proof que esteve em Cannes: as actrizes Tracie Thoms e Rosario Dawson e a "dupla" neozelandesa, que faz dela própria no filme, Zoe Bell. Dizem elas que quando Quentin sai com as namoradas, ele faz questão de que essa seja mesmo a noite delas.
É que Quentin sabe ouvi-las. Ouvi-las falar.
Se tivéssemos que resumir, diríamos que Death Proof tem apenas duas coisas em duas horas e tal de filme: muita conversa e duas perseguições automóvel, uma no início, outra no fim.
Elas falam, falam de massagens nos pés, de "pilas", de como comê-los - as actrizes ficaram estarrecidas quando receberam o argumento: como era possível um homem, o realizador/argumentista, ter descoberto que as mulheres falavam assim entre elas?
Enquanto isso, ele, o "duplo" com a testosterona aos saltos, vai preparando o "acasalamento". Brutal, metálico, a alta velocidade, ejaculando pedaços de corpos para todos os lados.
Já se percebeu que elas darão a volta no fim ("Não inventei nada, já era assim nos exploitation movies dos anos 70, o género de filmes a partir do qual estou a trabalhar aqui: a mulher no fim erguia-se, vencedora, para abater o "papão"", explicou Quentin).
Quer a parte da conversa quer a parte da perseguição são escritas e filmadas com a obsessão habitual. O virtuosismo é monstruoso. Tudo parece nascer de um compulsão, em Quentin, para esgotar o que se propôs fazer. Deixar terra queimada, para que ninguém se atreva a pisar esse território. Afinal, este é o homem que, reconheceu ontem, quando gosta de um filme tem de o ver quatro, cinco, seis vezes para o usar e gastar e poder continuar com a sua vida (até ver outro filme).
A experiência completa
Pode ser difícil, como espectadores, estar ao nível de uma obsessão assim. O mais provável é ficarmos embasbacados à distância, ofegantes, como quem observar ao longe uma explosiva corrida de alta velocidade. Kill Bill conseguia a proeza de levar os espectadores, através de uma viagem sensual, aos guilty pleasures cinéfilos do cineasta. Death Proof pode exigir um esforço maior do espectador. Quanto mais ele souber o que é isso dos exploitation movies ou slasher movies, quanto mais tiver na sua cartilha educacional a experiência de espectador de sub-produtos de "série Z", de violência e sexo, que é isso o que designam essas expressões, talvez mais emocional, e menos racional, seja a experiência de ver Death Proof. A palavra chave aqui é grindhouse.
O que vimos em Cannes não é o que os espectadores americanos viram nas salas. Nos EUA estreou-se este ano um filme, Grindhouse, uma sessão dupla que recriava as experiências, que tiveram o seu auge nos anos 70, de alguns cinemas americanos, em zonas degradadas, que ofereciam (a quem se quisesses esconder das ruas, a quem quisesse dormir ou a quem quisesse alimentar aí a sua obsessão cinéfila), terror, violência e acção em cópias demasiado usadas, riscadas, com cenas em falta. Esses cinemas, exemplares em decadência de salas opulentas do passado, ficaram conhecidos como grindhouse. Quentin e o seu amigo Robert Rodriguez tiveram a ideia de recriar a experiência. Cada um fez o seu filme: Death Proof, o de Tarantino; Planet Terror, o de Rodriguez (filme de zombies).
Fizeram mais: riscaram as cópias, introduziram legendas a dizer que havia bobinas que faltavam, "explicando" assim porque é que a acção dava saltos de continuidade, pediram a amigos realizadores que filmassem trailers, para passarem antes da sessão, a anunciar filmes que, na verdade, nunca vão existir. Era esse o pacote, a experiência completa grindhouse, numa sessão de três horas.
Correu mal, comercialmente. Ou porque não ficou memória desse hábito dos 70. Ou porque, se calhar, a coisa chegou demasiado próximo da consciência da "instalação" e afastou-se da pulsão básica. A versão Grindhouse só vai poder ser vista na Europa em DVD. Foi decidido que a exploração comercial se fará com os filmes em separado (segundo o produtor Harvey Weinstein, o Festival de Veneza vai estrear o filme de Rodriguez). De qualquer forma, os jornalistas americanos em Cannes que viram as duas versões continuam a preferir a lá de casa. O conjunto, dizem, ajuda o espectador. Mesmo que os filmes em separado possam até trazer mais cenas do que na versão americana - trazem os riscos, trazem os saltos, mas não trazem os "trailers".
Seja como for, Quentin está aos pés das mulheres e as mulheres que viram Death Proof ficaram aos pés dele. Há por aqui um ícone para a causa feminista.

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