Jane Austen

Sucedem-se filmes e séries de televisão que adaptam o púdico universo de Jane Austen, escritora inglesa do século XIX. Acaba de estrear em Inglaterra um filme sobre a sua vida e há mais uma adaptação para televisão. Austen é um bom investimento, com uma comunidade mundial de fãs na Internet e fora dela

a Há fãs de Jane Austen que se reúnem para aprender as danças de baile dos livros da escritora inglesa, que organizam lanches onde bebericam chá e comentam passagens das suas obras. Alexandra Reis, consultora de comunicação de 27 anos, é uma delas. Faz parte do clube de fãs virtual Pemberley Republic e não foi em Portugal que teve estas experiências, já viveu em Inglaterra, Estados Unidos e agora na Bélgica. Ao longo dos anos foi conhecendo outros como ela, que marcam encontros por todo o mundo para partilhar este interesse comum.E não há falta do que comentar nas comunidades virtuais sobre Jane Austen do mundo inteiro. Há sempre novidades. A escritora inglesa voltou ao cinema com Becoming Jane (que se estreou em Março em Inglaterra e não tem data prevista de exibição em Portugal). Desta feita, em vez da enésima adaptação de um dos seus romances, o realizador Julian Jarrold decidiu pegar no pouco que se sabe sobre a sua vida e filmar uma biografia. A actriz norte americana Anne Hathaway (O Diabo Veste Prada) faz de Jane. Ao mesmo tempo, o canal britânico ITV acaba de fazer mais uma adaptação de Persuasão à televisão, tem previstas mais três para este ano e a BBC prepara mais uma versão televisiva de Sensibilidade e Bom Senso, noticia a BBC on-line.
Em Portugal, o fenómeno é mais discreto, mas no mês passado uma comunidade de leitores na Culturgest, em Lisboa, abriu com esta autora e acaba de ser editado um romance que tem como mote um grupo de leitores, O Clube de Leitura Jane Austen (editora Palavra).
Se há quem diga que a boa literatura é aquela que resiste ao teste dos tempos, então Jane Austen passa com distinção. Senão vejamos, contas por baixo: há pelo menos oito adaptações do livro Orgulho e Preconceito, seis de Emma, quatro de Persuasão, quatro de Sensibilidade e Bom Senso, três de Mansfield Park, duas de Northhanger Abbey. Imagine-se se tivesse escrito mais que seis romances.
O problema (ou não) é que há com certeza mais quem tenha tido o primeiro contacto com Jane Austen através do ecrã do que através das suas obras. Os mais puristas acharão que o melhor seria ter começado pelos livros. Mas muitos fizeram o percurso inverso, constatou Helena Vasconcelos, crítica literária, na sessão que dedicou à autora no mês passado, na Culturgest. Para Marta Ramires, coordenadora editorial da Casa das Letras, livros e séries "ajudam na conquista de novos leitores".
A avaliar pelas conversas on-line, existe um mundo Jane Austen antes e depois de Mr. Darcy protagonizado pelo actor Colin Firth, transformado em sex symbol pela versão da BBC de Orgulho e Preconceito (1995). As adaptações de época do canal britânico são consideradas as mais fiéis às obras. Apesar de não ter piscado o olho ao espectador actual com elementos modernos como beijos e cenas sexuais (obviamente ausentes dos livros), o apelo às audiências modernas estava lá. Que o diga a solteirona Bridget Jones, que consola as suas mágoas amorosas de controlo remoto na mão a ver e rever a cena fatídica: Mr. Darcy (melhor dizendo, Colin Firth) depois de um mergulho num lago sai com a camisa colada ao corpo. É o efeito Darcy-Mr. t-shirt molhada.
Na comunidade virtual a República de Pemberley (nome da propriedade de Darcy) há quem seja completamente contra modernices nas adaptações. "Há muito fundamentalismo contra os filmes", comenta Alexandra Reis, lembrando alguns pormenores que podem ser lidos como adulteradores da obra: na última adaptação de Orgulho e Preconceito, com a actriz Keyra Knightley, Mr Bingley entra no quarto de Elizabeth encontrando-a com os cabelos soltos; a mesma responde aos pais algo como "Eu faço aquilo que me apetecer..." Impensável para a época. "Eu divirto-me com todas as adaptações." Lembra-se de uma das que considerou mais divertidas. Pride and Prejudice (que ficou traduzido em Portugal como a Noiva Indecisa) passa-se no universo de Bollywood. Também há Jane Austen num liceu da Califórnia, em Manhattan.
Alheamento histórico
O mesmo ocorre no universo livresco. Além das edições e reedições dos seus livros, não passa muito tempo até que saia novo livro que tem como pretexto o universo austeniano: o Livro de Cozinha Jane Austen, por exemplo; no ano passado a editora Casa das Letras editou em Portugal Amor e Sedução segundo Jane Austen, de Lauren Henderson, um daqueles livros de instruções, do estilo como iniciar uma relação e mantê-la, que toma como lições os pares românticos da escritora.
No mês passado foi a vez da edição portuguesa do romance O Clube de Leitura Jane Austen, de Karen Joy Fowler, que pretende mostrar que "todos nós temos uma Jane Austen pessoal", ficcionando um grupo de discussão de cinco mulheres e um homem (que de início é mal vindo) que se reúnem em casa uns dos outros para debater o universo da escritora.
O mundo de Austen passou assim dos filmes, séries de televisão para os livros e depois para a Internet. Existem dezenas de comunidades de fãs na Internet, uma no Reino Unido, outra da América do Norte, Austrália, Argentina... A Net permitiu aos consumidores de Austen partilhar este universo, explica ao P2 por e-mail Kate Bowles, investigadora australiana que estudou o fenómeno e escreve sobre esta comunidade virtual no livro Jane Austen on Screen. A existência desta massa crítica global poderá ser uma das razões por que se sucedem as adaptações fílmicas. "São uma garantia de existência de mercado", sublinha.
No meio desta euforia a autora também tem os seus detractores. Criticam-lhe o universo "claustrofóbico, entediante", disse à BBC on-line Celia Brayfield, professora de literatura na Universidade Brunel, em Inglaterra. Criticam-lhe o alheamento histórico, o facto de ter passado ao lado das guerras napoleónicas que estavam a decorrer no seu tempo. Helena Vasconcelos refere que a autora estava a par dos acontecimentos do seu tempo, mas escolheu falar de um universo social "de pessoas banais", que "não são completamente boas nem más, são humanas".
Criticam-lhe ainda os delico-doces finais felizes. Para Teresa, engenheira de 30 anos e uma fã que faz parte da comunidade de partilha de livros Bookcrossing, pensar assim é passar ao lado do enorme universo de finais infelizes nos livros de Austen. Sim, é verdade que herói e heroína acabam no altar depois de muitas peripécias, mas há uma panóplia de personagens secundárias sem a mesma sorte, são aliás as que mais atraem Teresa. Por exemplo, em Orgulho e Preconceito a melhor amiga da protagonista acaba casada com um marido medíocre e cretino, por falta de opções.
Diferenças de opinião à parte, uma resposta é comum. Jane Austen continua a ser popular porque é familiar e o seu universo reconhecível. Quem não conhece uma tia horrível e rezingona como a de Darcy? Um homem com estatuto social que está convencido que por isso é irresistível como o primo de Elizabeth?, enuncia Teresa. É tudo tão familiar, "é quase como ler um livro passado em Lisboa", a cidade onde vive.
Também para homens
Mas se hoje há quem pense no universo Jane Austen como cor-de-rosa e destinado a mulheres românticas saiba que nem sempre foi assim. "Os romances de Austen chegaram a ser tão populares junto de homens como de mulheres", explica Harriet Margolis, professora da Victoria University of Wellington, na Nova Zelândia e estudiosa da autora.
Um exemplo: uma das primeiras histórias escritas sobre o universo de Jane Austen é da autoria de um homem, o britânico e Prémio Nobel Rudyard Kipling, e fala sobre um grupo de soldados da I Guerra Mundial (há lá universo mais viril?) que conhece os livros de Austen como ninguém e vê os seus romances como uma forma de escapar à angústia das trincheiras. O título, Janeites, designa os fãs inveterados de Austen. Alexandra confirma. "O nome para pessoas como eu? Janeites."
Mas a imagem de literatura cor-de-rosa persiste e Austen continua a enfrentar o preconceito de ser uma mulher escritora. Um episódio passado há dois meses é significativo: uma editora decidiu embelezar a sua única imagem que se reconhece como autêntica, um retrato feito pela irmã. Tiraram-lhe a touca da época, os cabelos ficaram com extensões e o rosto ganhou cores com maquilhagem.
Helen Trayler, directora da editora inglesa Wordsworth, justificou a decisão à BBC on-line: "Eu sei que é suposto não se julgar um livro pela capa. Mas a pessoas fazem-no [e a escritora não ficava a dever à beleza]." Decidiram assim torná-la mais atraente numa reedição das memórias do seu sobrinho. "Alguém se preocupa em saber se Dickens era bonito?", pergunta Teresa.
Na sua época (nasceu em 1775 e morreu em 1817) as mulheres queriam-se recatadas, domésticas e longe do olhar público. Ser uma mulher escritora era uma ousadia. Austen publicou algumas das suas obras de forma anónima para não prejudicar a sua reputação.
Depois da sua morte, a família procurou adequar a sua imagem à de uma escritora que nunca procurou nem fama nem dinheiro. A pouca correspondência que restou deixou dela uma imagem diferente, de alguém ambicioso - queria ser publicada e até foi apoiada neste intento pela família, algo raro na altura.
Da sua biografia sabe-se pouco: que terá morrido virgem solteira, que recebeu uma proposta de casamento de um homem mais novo que primeiro aceitou e depois acabou por recusar. Se elegermos a heroína que mais se parece com Jane, talvez seja Elizabeth de Orgulho e Preconceito: desafiadora para o seu tempo, não era muito bonita, era inteligente, gostava de ler, recusou casar-se com quem não gostava, mas enquanto a personagem de ficção voltou a ter outra oportunidade e acabou por casar; a Austen tal não aconteceu - morreu sozinha aos 41 anos.

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