A desigualdade salarial é um problema de todos

A concentração excessiva de dinheiro e de propriedade tende a converter-se em concentração de poder político

Num recente Prós e Contras, em que se criticava o escândalo da evolução das remunerações dos gestores de topo nos últimos anos, Fátima Campos Ferreira, num aparte, observava que tal se passava no sector privado. Quereria a jornalista dizer que a situação não merecia tal condenação moral, pois os custos dessas remunerações não são suportados pelo erário público, antes resultam de decisões privadas "voluntárias" e menos passíveis de crítica política e de avaliação moral. Esta ideia, que funda a artificial separação entre o domínio dos assuntos do Estado, sujeita a avaliação política e moral, e um domínio privado, apolítico e amoral, merece a nossa contestação. Só através da superação desta dicotomia é possível colocar a discussão no terreno certo, que é o do tipo de valores que devem definir as relações económicas entre os indivíduos e os resultados que assim se obtêm, no público ou no privado. Até porque o que se passa na economia, em toda ela, afecta o que somos capazes de ser e de fazer nas outras esferas da vida social. Em primeiro lugar, é bem lembrar, é o Estado que em larga medida institui a economia. O que se passa no sector privado é o resultado de decisões políticas, enquadradas por valores, que estabelecem as "regras do jogo" que influenciam quem se apropria do quê e porquê. Ou seja, o facto de os gestores das empresas privadas ganharem o que ganham não é independente da maneira como o Estado enquadra a actividade das empresas, de como estrutura os direitos e obrigações que regem o que se passa para lá do portão onde está inscrito "proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço". O mercado e a propriedade privada não são instituições de geração espontânea e a forma como são enquadrados pela comunidade política influencia o que se obtém nas "actividades privadas". É por isto que entre os países capitalistas temos situações variadas de desigualdade salarial. Em segundo lugar, o que se passa nas empresas privadas afecta as capacidades, os recursos e o poder que cada um de nós detém fora do seu horário de trabalho. A concentração excessiva de dinheiro e de propriedade tende a converter-se em concentração de poder político, em capacidade para influenciar e moldar decisões que dizem respeito a toda a comunidade.
As decisões privadas têm assim diversos impactos públicos e como tal têm que ser sujeitas a escrutínio. As decisões privadas podem gerar o que em jargão económico se designa por "externalidades negativas", ou seja, potenciais consequências negativas sobre terceiros, neste caso a sociedade no seu todo. Estão neste campo as decisões que contribuem para o incremento da polarização social. Como aqui escreveu José Vítor Malheiros, o somatório de decisões privadas erradas reforça um sistema: "que amplia a conflitualidade social, que não promove a competência e a qualidade e que muito menos promove o investimento profissional ou o empenho profissional". De facto, muita investigação económica e sociológica tem mostrado que níveis de desigualdade elevados, gerados por regras do jogo vistas como injustas, têm impactos negativos sobre o desempenho económico dos países. A cooperação, a confiança, a reciprocidade e a motivação pelo trabalho bem feito, ingredientes fundamentais para um bom desempenho económico, tendem a ser corroídos em sociedades demasiado desiguais e injustas.
Estas são algumas das razões por que é relevante a indignação moral sobre a assimetria salarial no sector privado em Portugal. Isto diz respeito a todos e todos temos que alterar as "regras do jogo" que geram esta situação. Não nos esqueçamos que foi Adam Smith que escreveu A Teoria dos Sentimentos Morais, onde afirmou que "a disposição para admirar e quase para adorar os ricos e poderosos e para desprezar, ou pelo menos para negligenciar, as pessoas pobres ou de condição humilde... é... uma grande e universal causa de corrupção dos nossos sentimentos morais". E sem sentimentos morais a riqueza da nação pode estar em causa. Economista e investigador universitário

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