Banda Desenhada Toupeira pôs Beja no roteiro português

Há em Beja mais de 20 autores de BD que fazem histórias e as publicam, dinamizam uma bedeteca
e organizam um festival. O que é que se passa?

a Quem passasse esta semana pela praça Luís de Camões a altas horas da noite não poderia deixar de reparar nas luzes acesas da Casa da Cultura de Beja. Aproximando-se, ficaria surpreendido com a azáfama de um grupo com ar cansado - uns a pendurar molduras, outros a dar os últimos retoques nos painéis com grandes imagens a preto e branco, alguém mais ao fundo da sala a montar focos eléctricos...São as últimas horas de um esforço febril, que começou há semanas, para ter tudo pronto quando o III Festival Internacional de BD de Beja abrir as portas, hoje à tarde.
No centro deste "furacão" está o colectivo Toupeira e o seu dinamizador, Paulo Monteiro, que é director da Bedeteca de Beja e do festival.
Sem o empenhamento e boa vontade deste grupo de homens e mulheres, Beja não seria hoje um ponto obrigatório no roteiro da banda desenhada em Portugal. É aqui, no coração do Baixo Alentejo, que vive e funciona um núcleo de 21 autores de BD, número que só é superado pelos quase 40 criadores inventariados pelo Centro Nacional de BD e Imagem da Amadora, que vivem na Grande Lisboa.
Mas para chegar até este interessante e bem organizado festival, que é a expressão mais visível e mediática do trabalho de mais de uma década, o caminho foi árduo e vibrante.
Recuemos até 1996 para imaginar o efeito que teve numa dezena de jovens adolescentes interessados pela ilustração e (menos) pela banda desenhada, a descoberta de artistas como Crumb e Druillet, Blain e muitos portugueses nas páginas da revista de BD Visão. Não é difícil de supor que a oferta cultural em Beja seria, nesse tempo, pouco menos que inexistente. Por isso, Paulo Monteiro, monitor do curso e uns 10 anos mais velho do que a média dos inscritos, catalizou facilmente os sonhos e a sede de conhecimento dos participantes.
E assim se lhes abriram as portas de um universo fabuloso, povoado por heróis e aventuras em todos os quadrantes e tempos históricos ou míticos.
Um dia, o curso acabou mas ninguém se quis ir embora. Continuaram a reunir-se duas vezes por semana à noite e foi assim que se institucionalizou o Toupeira - Atelier de Banda Desenhada. "Durava o ano inteiro e só interrompia quando eu ia de férias", conta Paulo Monteiro. Trocavam-se experiências, estabeleciam-se parcerias, cruzavam-se leituras, discutiam-se ideias e prolongava-se o convívio em saídas nocturnas pelos cafés e bares da cidade.
De carro ou de comboio, percorreram tudo o que eram salões e festivais de BD, em Portugal e em Espanha, para contactar autores de outras latitudes. E, sobretudo, ousaram publicar as suas histórias. Em formato A3, o Pax-Fanzine foi a primeira publicação, já em 1998. "Tinha pouca qualidade gráfica, mas as expectativas eram grandes", diz Monteiro.
Outros se seguiram, como o Lua de Prata (2000). Alguns dos autores do atelier abalançaram-se a editar os seus próprios fanzines - Véte deu vida a 18 publicações diferentes, e o mesmo fizeram Maria João Careto e Pedro Baltazar, por exemplo.
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Em 2003 é dado um novo passo com a apresentação à Câmara Municipal de Beja do projecto de uma bedeteca e de um festival de banda desenhada. A autarquia diz que sim e dois anos depois surgem uma e outro, com o envolvimento dos elementos do Toupeira, que encontram renovados meios de publicação (fanzine Venham+5 e Colecção Toupeira) e divulgação (as exposições e caderno Splaft!)
Quando isso aconteceu, já nove anos tinham decorrido desde a fundação do colectivo. A entrada no mercado de trabalho ou os acidentes da vida levaram muitos para fora de Beja - Luís Ferro vive em Évora, Lam reside em Lisboa e Luís Guerreiro em Sines, Lobato trabalha em Alverca e Rita Silva está em África. Outros, como Susa Monteiro, Carlos Apolo, Maria João Careto e Zé Francisco continuam em Beja.
Os laços interpessoais tornam-se fluídos e irrompem com mais força os projectos individuais. "As pessoas vivem mais as suas vidas, mas aparecem na altura do festival para ajudar nas coisas práticas", diz Susa Monteiro, que parece aceitar com alguma dificuldade esta afirmação de um inevitável, reconhece, individualismo criativo. Outros encontram-se temporariamente afastados, como acontece a Zé Francisco: "Continuo a fazer BD. Não me distanciei do grupo, mas falta-me tempo, sou trabalhador-estudante. Para o ano acabo a minha licenciatura e espero voltar em força." E depois há a natural renovação. Inês Freitas, de 14 anos, é a mais recente conquista do Toupeira e uma promessa no campo da BD de expressão japonesa. Conta Paulo Monteiro: "Ela já tinha ouvido falar de nós e tinha vontade de participar. Mas como é muito tímida, foi o pai quem veio falar comigo. Desenha muito bem."
Paulo Monteiro vê tudo isto sem inquietação: "Há gente mais afastada, mas isso é natural. O que eu sei é que não haveria todos estes autores em Beja se não fosse o atelier, onde coexiste uma enorme diversidade de estilos e centros de interesse." Residirá aí o segredo da longevidade do grupo? A questão parece importar pouco a Paulo Monteiro, que olha noutra direcção: "Queremos fazer deste projecto um pólo de referência para o sul do país", diz. "Fazendo minhas as palavras de outrem, é preciso sonhar com o céu para chegar às copas das árvores."

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