O Rei da Rádio voltou a cantar o amor

Prestes a fazer 69 anos e a 365 dias de comemorar 50 anos de carreira, António Calvário voltou aos palcos do Maxime. Quem é Calvário agora e até onde poderá ir este regresso?
No sábado foi recebido como um pequeno Deus

a Fato preto imaculado, camisa preta, cabelo alourado, curto e longe do visual espampanante dos anos 70: muitos, muitos anos depois António Calvário voltou à sala que, nos anos 60, "rivalizava com o Casino Estoril e tinha atracções especialmente vindas de fora" - conta Calvário já depois do concerto. "O Júlio Iglésias cantou aqui 15 dias, no início da carreira", acrescenta. Quando Calvário chegou pela primeira vez ao Maxime, numa altura em que a bebida mais frequente da casa era o champanhe, era o Rei da Rádio, o cantor de charme romântico com quem todas as raparigas sonhavam. Quando voltou pela segunda vez tinha dívidas, à conta do insucesso dos filmes que tentou produzir. Aos 69 anos, regressando pela terceira vez, quem é ele?A casa está menos cheia do que aquando do regresso de José Cid, outro símbolo de décadas passadas, talvez porque Calvário é mais sério do que Cid. No fim do concerto, Gimba, o ex-músico dos Afonsinhos do Condado que hoje está à frente das Produções Banana (que trouxeram Cid ao Maxime), afiança que "enquanto o Cid tem qualquer coisa de transversal à idade, o Calvário não tem. Até estou espantado com a reacção do pessoal", diz: do princípio ao fim Calvário é recebido como um pequeno Deus, sempre ovacionado - mas é difícil perceber até que ponto, pelo menos para os mais novos, não há algo de iconoclasta em aplaudir o ídolo dos pais.
Esquecido há 30 anos
Calvário pode até não ser tão transversal quanto Zé Cid, mas há casais idosos, grupos de senhoras de 60 e muitos anos, vestidas a primor para recordar o seu ídolo de juventude, algumas já a necessitar de uma bengala para se deslocarem - há 40 anos o mais certo seria não se atreverem a entrar no Maxime. Mas há também raparigas indie de vinte e poucos anos, que não eram nascidas no 25 de Abril, quarentões, actores.
Profissionalíssimo, o antigo Rei da Rádio introduz cada canção que vai tocar, recorda como surgiram, mas sem se estender demasiado. Sempre de sorriso imaculado, introduz Olá, cidade, canção de Tozé Brito e Rosa Lobato Faria, em que canta "Olá amigos, olá cidade/ estou de novo aqui (...) nunca te esqueci".
Quando chega a altura de cantar Regresso, o seu primeiro grande êxito, diz: "Esta é a canção que me tornou conhecido de todos os portugueses por esse mundo fora." Calvário pode estar esquecido há 30 anos, mas em palco isso pouco importa - e apresenta-se como se ainda fosse o Rei da Rádio, um concurso extremamente popular do início da década de 60, que ele venceu em 61, 63, 65, 66 e 71. Em 62, ganharia o Óscar da Imprensa, e em 64 o Festival da Canção, com Oração.
Nessa altura era habitual estrelas do calibre de Calvário fazerem extensas digressões pelas comunidades portuguesas espalhadas pelo estrangeiro - e havia uma espécie de star-system português, em que as estrelas da rádio apareciam nos filmes e vice-versa (além do teatro de revista). Calvário estreia-se no teatro em 63 (com o êxito Chapéu Alto) e em 64 contracena com Madalena Iglésias em Uma Hora de Amor - na altura, como golpe publicitário, falava-se de um casamento entre ambos. Pouco tempo depois de Sarilho de Fraldas (1966), produz O Diabo era o Outro (de 1969) e as dívidas do filme obrigam-no a aceitar qualquer concerto que lhe é proposto.
É aí que começa o declínio de Calvário, acentuado pelo 25 de Abril: além da conotação com o regime, Gimba acredita que "o gosto mudou para pior, os compositores são piores". Na prática isto implicou, como admitem os que são próximos de Calvário, que ele tivesse de passar décadas a cantar em cabarés do bas-fond do país para sobreviver.
O reportório de Calvário, hoje, centra-se nos seus êxitos dos anos 60, com algumas canções posteriores, como Mocidade, a canção que assinalou o seu regresso ao teatro de revista, em 1978, e que foi o seu último êxito. Maria Eduarda, de 65 anos, "adorava-o" nessa altura em que "ele passava todos os dias na rádio" - uma amiga acrescenta que isso era inevitável porque "a censura impedia de se ouvir tudo o resto". Graciete Oliveira, também de 65 anos, recorda como Calvário "era um grande artista e era muito bonito", antes de concluir: "Era um fervor." O marido, Eugénio Oliveira, vai mais longe: "Quando apanhamos uma pessoa destas, que sabe cantar e servir o povo, ela merece toda a nossa atenção."
Graciete e Eugénio são os pais de Pedro, o baterista de Calvário. Há mais dois músicos da banda do Rei da Rádio que parecem ter acabado de sair da idade dos confrontos com a acne: o teclista e o baixista. Apenas o guitarrista tem ar de ter nascido muito antes do 25 de Abril. Já bastante depois do fim do concerto, iria para cima do palco dançar furiosamente ao som de David Bowie no meio de raparigas de 20 anos. Uma insuspeita costela de rocker.
Calvário, que cantou sem munição, troca de roupa ao intervalo, para um fato azul claro de calças vincadas justas. Em palco abre o braço esquerdo para os céus durante uma canção mais romântica, dança com a mão encostada à barriga (como Iglésias), e, durante Oração, parece tremer de fervor enquanto sobe e desce a voz, com impressionante intensidade. Acaba com as mãos unidas, como se rezasse, como há 40 anos.
Coliseu popular
A actriz Rita Blanco confessa que a sua vida "pré-25 de Abril não passava pelo António Calvário", mas acabou "por ser agradavelmente surpreendida: ele tem mais graça do que estava à espera, é muito simpático e tem muito brio profissional". O actor José Raposo afirma que "ele é uma referência da música ligeira". Calvário diria mais tarde, já no camarim: "Acho que já entrei na história da música portuguesa."
Mas Raposo vai mais longe: "A única coisa que lhe falta é uma orquestra por trás. Mas quiseram destruir a cultura popular e ligaram isto ao Antigo Regime". Como dizia Gimba, referindo-se às estrelas do pré-25 de Abril: "Estão todos vivos", mas mediaticamente desapareceram.
Mais tarde, sereno e simpático, o conhecido cantor romântico concordaria com Gimba: "Eu nunca desapareci, nunca parei de cantar. Havia talvez menos informação escrita, falava-se mais de artistas estrangeiros." Agora declara-se fã de Mikael Carreira, e tem um sonho - festejar os 50 anos de carreira, para o ano, num disco de duetos com os seus artistas preferidos. "Gostava de convidar o Rui Veloso e outros, mas não tenho coragem, não gostava de levar um não. Ficaria magoado."
Não é o único sonho: "Quando ganhei pela primeira vez o concurso de Rei da Rádio o concerto foi no Coliseu de Lisboa", recorda. "Gostava de fazer a festa dos 50 anos no Coliseu, a preços populares, para ter gente do povo. Foi a gente do povo que me fez. Eu tornei-me popular com os populares".
Prestes a perfazer 69 anos, vai mexendo no vistoso anel que trazia na mão esquerda quando deixa escapar uma última declaração: "Já não vou cantar muito mais".

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