Há artistas nas garagens da Picheleira

a Lixo do dia atirado para a porta do artista plástico João Pedro Vale: uma embalagem de fraldas com espuma amarela enfiada lá dentro, cascas, beatas, um pacote de leite meio-gordo e panfletos do género fiambre da pá, 0,99 euros.A porta é, mais exactamente, um portão de garagem ao cimo de uma rampa.
E se não fosse a rampa João Pedro Vale - que daqui a menos de duas semanas inaugura uma exposição e está lá dentro a reconstituir a História portuguesa em reclames luminosos, cinzas e sal - não tinha vindo instalar-se nesta rua da Picheleira.
A Picheleira é uma daquelas zonas que os lisboetas (não) vêem quando atravessam sem parar um vale com prédios de habitação social que parecem "legos".
Entre o Alto de São João, as Olaias e Chelas, uma daquelas zonas que para gente de fora é "problemática", para alguns taxistas "ciganagem" - e há gente de dentro que concorda.
Porque a Picheleira são várias.
Num lado da rua, em prédios que antes da revolução já deviam ter pouca cor, moradores antigos de décadas (como os septuagenários ao balcão da Toca da Picheleira).
No outro lado da rua, em prédios dos anos 2000 vermelho-carmim, famílias ciganas e realojados da quinta da Curraleira (que ficava para lá do vale, onde restam umas barracas).
E nas traseiras, a entrada dos artistas (pelo menos seis, mais uma cooperativa de arquitectos e armazéns de companhias de teatro).
É literalmente assim. Os artistas entram pelas traseiras porque trabalham no que iam ser as garagens de habitação social e - por causa de um erro de cálculo que inviabiliza o acesso automóvel - agora são ateliers de 250 m2, virados para poente (tardes de magnífica luz, enquanto o vale ainda é verde).
Como os outros cinco criadores nas ex-garagens da rua, João Pedro Vale trabalha aqui de manhã à noite. E à hora de almoço, perto, só o restaurante Toca da Picheleira, que aliás tem a sua idade. São ambos desse longínquo ano de 1976, quando tantos portugueses acreditavam que Salazar nunca mais.
A data de nascimento de João Pedro Vale é relevante nesta história. Dá título a Nascido a 5 de Outubro, exposição na Galeria Filomena Soares a partir de dia 19.
Ele abre o portão para vir cá fora receber e volta a fechá-lo. Rua acima, rua abaixo não há garagens abertas. Várias têm gente mas não se nota. Podia pensar-se que não são usadas, não fossem os avisos do alarme e as barras nas janelas. O alarme, as barras e as janelas fazem parte dos três mil contos que João Pedro Vale gastou no espaço.
A maior parte dos artistas optou por open spaces, mas este tem mesmo paredes. Um hall com uma porta para as escadas que sobem ao atelier de João Onofre, e portas de cada lado para as duas grandes zonas em que João Pedro dividiu o seu espaço.
À direita é sobretudo armazém, actualmente dominado pelo impressionante Barco Negro apresentado na Bienal de Pontevedra em 2004.
"Uma grande vantagem deste atelier é que em nenhum outro eu conseguia enfiar isto", diz João Pedro, a caminhar ao longo do barco como o sobrevivente de uma catástrofe. Incrivelmente magro, cabeça rapada, fuma com uma espécie de energia em pausa, por cortesia.
O barco, um velho barco, foi transformado num altar negro do imaginário português da chuteira à santinha. Há mesmo chuteiras e bolas de futebol entre peixes, redes, garrafas e garrafões, xailes, rosas, tudo negríssimo, com cobras a pender e nossas senhoras das dores em cera a toda a volta, como gárgulas apontadas ao céu.
E de repente ouve-se um borbulhar temível, mas não é uma instalação.
São mesmo as entranhas do prédio a passarem por aquelas tubagens ali no tecto. Uma espécie de soluço do atelier. Em palavras antigas, água-vai.
Por baixo dos tubos está a armação do barco. Não é peça maneirinha para um coleccionador individual.
Já o par de bois envolto em plástico como se tivesse vindo da lavandaria é um pouco mais portátil. João Pedro levanta a ponta do véu para mostrar uma pata alegremente florida, coberta por amores-perfeitos de papel. "São uma mistura entre as festas de Campo Maior, as cerâmicas de Barcelos e os amores-perfeitos, título da peça. Foi feita para uma exposição no Mosteiro de Alcobaça comemorativa de Pedro e Inês [em 2005]."
Portanto, bois em tamanho natural, barco, mais carcaça do barco, mais armários e tralha avulsa, e ainda vamos na sala dos arrumos, que tem tanta luz natural como a outra.
"Só existiam respiradouros, nós é que rasgámos as janelas", explica João Pedro. "Fez toda a diferença quando a luz entrou. Isto estava em bruto. Foi preciso rebocar e pintar as paredes, nivelar o chão com cimento e depois pintar, fazer as divisórias, uma casa de banho..."
Tratar das instalações eléctricas que agora permitem, por exemplo, pôr em movimento as luzinhas azuis da palavra no chão, "O Encoberto" - esse mesmo que estão a pensar. Parece um painel de... roulotte, ajuda João Pedro, "é essa a estética". Roulotte das farturas, mas sebastiânica. Vai integrar a exposição.
Na outra sala, o verdadeiro estaleiro da criação, Nuno Ferreira (colaborador de João Pedro) está a fazer furinhos em mais uma palavra (para prender as luzes, neste caso vermelhas), enquanto uma jovem se ocupa do que parece uma mesquita de esferovite, desenhando arabescos que hão-de ser escavados em baixo relevo.
Uma trabalheira de formiga, com os respiradouros abertos para o sol, o vale, o cemitério lá ao fundo. Só não é silêncio por causa da algazarra Antena 3, a rádio que se ouve neste palco de batalha.
Há armaduras, elmos em cima de perucas louras, patas de cavalo encostadas a urnas com a inscrição do túmulo de D. Sebastião e o que parecem mesquitas são construções inspiradas em Mazagão, a actual El Jadida, em Marrocos. "O Marquês de Pombal pegou na cidade em peso e levou-a para a Amazónia, e o que estou a fazer é uma peça em sal a partir de uma representação de Mazagão da altura."
Os sacos gigantes de "Sal Marinho - para temperar e cozinhar" estão empilhados no chão e as colunas brancas ao pé da janela são na verdade canhões, já cobertos de sal, à espera de serem colocados. As construções de esferovite serão também cobertas de sal quando os relevos estiverem acabados. E não são relevos ao calhas. "Foram tirados de mesquitas e portas marroquinas, aquele por exemplo é de Marraquexe", aponta João Pedro.
A forma como "os mitos fundadores foram utilizados na implantação da República e no Estado Novo" é a base deste estaleiro.
Que aparentemente ninguém do bairro vem espreitar.
"No início era mais isolado, mas agora vêem-se pessoas a passear cães", diz Nuno. "A imagem que há é que é uma zona pesada, mas depois aqui isso não se sente", ressalva João Pedro. "Estamos cá há um ano e meio e nunca houve problemas."
Mas há histórias. E, no princípio, muitas crianças. "Uma vez vieram aqui bater à porta e ficaram colados a mim, porque eu não me desviava da entrada." Estratégia para ver o que havia dentro. Também tentaram rondas de bicicleta e deixar cair uma bola nas barras.
A pintora Sara Maia (atelier ao fundo da rua, exposição a partir de 8 de Maio na Sala do Veado, Museu da Ciência) recebeu o que amavelmente chama "um presente de boas-vindas" ou "demarcação de território" em forma orgânica e sólida. "Ele bateu à porta e quando abri fugiu, de calças na mão."
Sem forçar a nota escatológica, "limpar merda" à porta foi o que fez Pedro Gomes (atelier ao cimo da rua, exposição até dia 14 na galeria Filomena Soares), antes de os repórteres chegarem.
Escolhidos entre 20
Do ponto de vista dos criadores, a história começa há três anos quando Daniela Ribeiro - neste momento em Barcelona - sabe que a Câmara de Lisboa está a aceitar candidaturas para protocolos de cedência de espaço.
"Os projectos de realojamento têm que ter garagens, mas havia ali uma impossibilidade de parquear os carros, e tínhamos imensos pedidos de espaços", relembra Helena Lopes da Costa, então vereadora do PSD da Acção Social, Habitação e Património. "E entendemos que era bom levar artistas para os bairros sociais. Eram novos agentes culturais, não tinham espaço físico e os espaços são caros."
A iniciativa nasceu - linguagem camarária - nas reuniões da sub-comissão do PER (Plano Especial de Realojamento), que faz parte do PUVC (Plano de Urbanização do Vale de Chelas), nome oficial para toda esta zona, incluindo a Picheleira.
Nessas reuniões estavam representados vários departamentos da câmara e os pedidos de espaço eram analisados consoante o departamento em que se inseriam.
"Entre 2002 e 2005 fomos contactados por cerca de 500 instituições e pessoas singulares e fizeram-se cerca de 300 protocolos para espaços não-habitacionais na cidade", resume Diogo Pipa, representante na comissão.
No caso das garagens da Picheleira, diz, "os carros não cabiam, os serviços confirmaram isso, e a partir daí, como tínhamos imensos pedidos..." Fazer protocolos com artistas era "dar uma outra vida àquela zona", mas também criar "uma transição" para "atrair outro tipo de população".
Porque, sim, no vale de ervas e flores onde rapazes ciganos ainda passeiam cavalos prevê-se que sejam construídas habitações não-sociais (além de 259 novos fogos para realojamento do outro lado).
Segundo os estudos de urbanização, será "uma área para construção de centenas de habitações, comércio e serviços", adianta o engenheiro Pereira Nunes, responsável do plano. "Prevê-se que os loteamentos sejam aprovados até final deste ano e eventualmente vendidos em hasta pública."
Ou seja, casas a preços de mercado ali em frente aos ateliers, que então ficariam entre a Picheleira antiga/dos realojados e a nova urbanização.
Coube a Lucinda Lopes, técnica do departamento de cultura, a avaliação das candidaturas de artistas às garagens. "Todas estas pessoas passaram por mim", confirma, referindo-se a João Pedro Vale, João Onofre, Sara Maia, Pedro Gomes, Daniela Ribeiro e o estilista Ricardo Preto, além dos armazéns das companhias de teatro. Escolhidos entre quantos? "Não muitos, uns 20."
Feita a apreciação, os protocolos seguiam para Helena Lopes da Costa assinar. "São cedências precárias", ressalva a ex-vereadora. "Se a câmara amanhã entender tirá-los de lá, tira."
O compromisso foi os artistas fazerem as obras no espaço em bruto e pagarem o que tecnicamente se chama compensação, e na prática é uma renda.
"Cento e tal euros por mês", resume João Pedro Vale.
Estúdio glamoroso
O atelier de João Onofre está tão nu como os outros estão cheios. Como é mais alto, tem mais sol, que a esta hora é sedoso, dourado, a estender-se infinitamente pelo chão. À entrada há uma estante de livros, uma secretária com computador, telefone, impressora, vídeo, uma mesa cheia de papéis, um calendário Pirelli na parede (é trabalho, é trabalho).
Depois, à direita, ao longo da correnteza de janelas, o verdadeiro espaço aberto. Paredes brancas, uma reentrância côncava que forma uma espécie de cenário para filmar e fotografar, ao fundo uma rede de descanso presa a dois pilares de betão.
João Onofre (que neste momento tem exposições em Barcelona e Colónia) trabalha sobretudo em vídeo e este é o seu estúdio glamoroso na Picheleira (eis duas expressões que raramente terão aparecido juntas).
Também é um rapaz de 1976, como a Toca (onde não vai) e o amigo João Pedro, com quem partilha entrada de rua.
O primeiro atelier que teve era na Rua do Século e tinha três metros por três. "Uma secretária. Já nessa altura tinha telefonado para a câmara a perguntar se havia espaços para alugar, mas não havia." Depois teve uma sala na Rua de São Paulo pela qual pagava "400 e tal euros".
O investimento que fez aqui "amortiza" e "há a vantagem de poder filmar cá dentro, é grande, permite construir um cenário, colocar luzes".
À hora de almoço "é que é mais chato, porque não há quase nada". Então? "Temos de ir à piscina das Olaias."
Nunca vai à parte da frente da rua, onde fica a Toca. Quando veio ver o espaço avisaram-no de que a rua era "realmente "forte"", para terem atenção. "Tivemos que pôr os alarmes e as barras porque logo de início nos disseram que era perigoso. Isto era terra batida e havia bastantes seringas, carteiras roubadas, notoriamente um local de chuto - e ainda aparecem uns tipos nas rampas. Também há os miúdos com bonés e cães selvagens. Ainda a semana passada passaram uns dez carros da polícia e deixámos de contar. Fizeram uma rusga naqueles prédios ali em frente. Vi polícias de caçadeira."
Depois, há a odisseia do lixo. "Os senhores combinam connosco para virem recolher porque têm medo que se deixarmos lá fora seja incendiado." Já aconteceu.
"E as pessoas deitam o lixo pela janela", diz, com o seu ar de Elvis Costello um pouco abatido, a olhar para os quadrados de sol no chão. "Os homens do lixo não gostam de passar pela frente da rua porque as pessoas atiravam o lixo para cima da camioneta."
Também há relatos expressivos sobre como o estado dos contadores da água dissuadiu o senhor da EPAL. João Onofre viu com os seus olhos: "Era uma coisa extrema. Excrementos, pêlos de animais, penas de pássaros, e cheirava muitíssimo mal."
Ele, que vem a guiar do Príncipe Real, onde vive, ao princípio teve "episódios de putos a atirararem ovos ao carro, mas foi uma vez", nunca mais alguém o chateou. "Agora estou tranquilo. Sinto-me perfeitamente."
Mas sem relação com "lá fora". Nem como estímulo.
Na Toca
Um pouco acima, e com placa visível desda a via rápida, está a Arqcoop, cooperativa concebida pelo jovial Diogo Corredoura quando era aluno da Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Agora, com 29 anos, lidera um projecto - começou por ser de colocação de recém-licenciados e está sobretudo a dar formação a agentes imobiliários e arquitectos - que ocupa três espaços, ou seja 750m2, depois de gastar "100 mil euros de obras, e não se fez tudo..."
Estão aqui desde Julho de 2004. "Fomos os primeiros a chegar." E, ao contrário dos Joões, vão à Toca da Picheleira todos os dias. "Belo nome, não? Vamos ao cafézinho e almoçamos lá. Encontra-se ali toda a gente. Os senhores que trabalham nas oficinas de automóveis, o senhor que faz a distribuição das mercearias, uma família de ciganos que em vez de pôr o assador na rua quando a família vem vai para lá..."
Mais as associações da rua. "Temos os Médicos do Mundo, os Amigos dos Queimados, os timorenses, a Igreja Evangélica de Filadélfia... Não pedimos açúcar uns aos outros, mas conversamos."
Os criadores que participam mais nisto são o estilista Ricardo Preto (que estava no Algarve numa produção) e a sua amiga Daniela.
Problemas? "Só o lixo", atalha Diogo. "Atiram pela janela. Fraldas, tudo. E algum vandalismo, graffiti, vidros partidos. Em três anos e meio, assaltos, roubos, nada. Nenhum problema." Droga? "Havia duas pessoas que costumavam parar aqui nas rampas não sei se a aquecer a colher. Pedi-lhes para não virem, porque é muito chato receber clientes e eles estarem ali, mas sobretudo porque lá em baixo há uma creche e passam crianças. Deixaram de vir."
Os carros, "eles sabem de quem são e não lhes tocam".
E pelo menos de 15 em 15 dias a câmara vem e "limpa a rua toda".
Trepando as escadinhas que levam à parte de cima da rua, lá está o toldo amarelo da já célebre Toca. À porta, de bigode e avental, António Miranda, transmontano de 52 anos, há mais de 20 aqui. Virado para o outro lado da rua, que é a fiada de prédios de habitação social, com as tais associações todas, lembra-se de um tempo em que "as pessoas tinham para aí pombais e terrenos de batatas, hortaliças, abóboras".
Dos artistas tem a dizer que "são muito sociáveis". De nome, sabe que "o Ricardo tem a primeira ou a segunda garagem, depois há ali os arquitectos, o Diogo, e a Daniela, que é aqui de cima". Vêm "beber café, almoçar, lanchar".
A esta hora, com sol a pôr-se, só anciões ao balcão com muitos anos de Picheleira.
Visto de onde está António Miranda, o outro lado da rua é outro mundo, ali onde um grupo de jovens ciganos se encosta à esquina.
E aqui entra-se no domínio do que se diz sem que as pessoas digam que foram elas que disseram, porque vivem ali e não querem chatices e "aquele ali de casaco azul ainda outro dia assaltou uma senhora e andou prá aí aos tiros, é bastante perigoso".
Os rapazes na esquina dispersam. Estavam encostados a uma porta cheia de graffiti, trancada com corrente e cadeado, que habitantes antigos e novos dizem que foi "ocupada pelos miúdos ciganos" e "a câmara não faz nada".
O atelier-casa
O atelier de Ricardo Preto é um daqueles interiores de revista, versão "em bruto", que de fora ninguém diria. É, de facto, o mais aberto para a rua, até porque tem entrada pela garagem e por cima. Indo por cima, como agora, com um amigo de Ricardo a abrir a porta na sua ausência, há um portão interior que isola do resto do edifício e depois descem-se umas escadas. Lá em baixo é mais do que atelier, uma casa habitável e habitada.
Paredes de betão sem reboco, casa de banho em betão, lava-louça em betão, tudo aqui é open space, até a sanita (não tem porta). Há tudo o que é preciso para trabalhar e estar. Pauzinhos de sushi na cozinha, orquídeas e lápis na grande mesa de jantar-desenhar, manequins prontos a vestir, chariots cheios de roupa, mesas de adereços, notas nas colunas tipo "enviar looks fly, acessórios, tingir tecidos, elite a confirmar, camarões brancos pequenos", e uma grande estante de ferro com a roupa e os sapatos de Ricardo, à cabeceira da cama, lençóis à mostra, usada e pronta a usar.
Saindo, uma realojada da Curraleira quer mostrar o apartamento onde um dos filhos (que esteve preso e agora "diz que vai arrombar uma casa") está a dormir no chão. À espera do elevador, uma velha cigana toda de negro desaparece pelas escadas, sem trocar uma palavra com a vizinha - dois mundos. O apartamento está impecavelmente arrumado. Dois filhos a dormir, um no chão. O botão do elevador está todo rebentado. Os espaços públicos destes prédios com meia-dúzia de anos são, pelo menos, descuidados.
Na Toca da Picheleira é hora de assar pimentos no passeio, e há rapazes do bairro a acelerar carros estacionados.
Diz quem não quer ter nome que se a esplanada da Toca não está montada é para não haver "ajuntamentos" ali.
Voltando a descer as escadinhas para as traseiras onde ficam as garagens, um todo elegante Pedro Gomes, vestido de negro da cabeça aos pés, acaba de concluir a não invejável operação de limpeza já referida. "As pessoas usam isto como casa de banho..."
O seu atelier fica na cave, está entre os que têm menos luz. À esquerda, armazém, à direita zona de trabalho, o que neste caso quer dizer grandes telas com desenhos picotados e pintados do avesso a partir de fotografias impressas.
"A relação com o bairro ainda é incipiente. A comunidade cigana é fechada e a artística também não é muito aberta..."
Cão Saddam saiu
Mas não há braços-de-ferro. "Esta rampa era usada para deixar um cão-de-luta, preso com uma corda. Eu nem desci. Na rua sabe-se tudo, perguntei de quem era o cão, disseram-me que se chamava Saddam... Depois disso, só pedi para tirarem o cão." Era de uma família cigana. "E nunca mais."
"No outro dia, também, vinham com as camionetas da feira, cheias de caixas de cartão e um miúdo estava a atirar tudo aqui para o chão. Eu pedi: não atires. E ele, com certeza. E foi atirar dez metros mais à frente! Mas na melhor das intenções, eu deixei de ver os caixotes."
Pedro Gomes, que andou na Escola António Arroio e tem 34 anos, sempre se lembra de isto ter sido a Picheleira. "A cidade acabava aqui."
Está entre os que vão à Toca. Almoçar, não. Mas tomar café, sim. "E é limpíssimo."
Sara Maia, 32 anos, só não vai porque não bebe café. "Nem sou de cafés." Vem da Columbano Bordalo Pinheiro, onde mora e antes trabalhava, para aqui, onde as suas telas de dois metros respiram enfim.
O seu atelier é mesmo de rapariga, com uma citação de Sylvia Plath no frigorífico ("A voz de Deus está cheia de correntes de ar"), a louça coberta por um pano, cereais Linha, um altar com margaridas para Nefertiti, roupa e sapatos de pintar, uma assistente a responder a mails a um canto, e tudo, incluindo frascos de tintas, pincéis e desenhos, impecavelmente arrumado.
Chega cedo de manhã, às vezes sai noite escura. "Não tenho medo nenhum. As pessoas com quem me cruzo são gentis. O único problema é o lixo." Não simpatiza muito com os cães treinados, que "são como armas". Mas sem registo de problemas. "Há carros de luxo que vêem visitar-nos [para ver trabalhos] e nunca aconteceu nada."
É um sossego, mesmo sem silêncio: "Às vezes ouço-os a cantarem e dançarem, e isso é maravilhoso. Há uma que de manhã canta fado e ele à tarde canta música cigana."

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