Torne-se perito

A mais antiga música na terra

Os Master Musicians Of Jajouka featuring Bachir Attar vão actuar hoje ao vivo no CCB.A sua música "transforma os estranhos em familiares e devolve a humanidade aos loucos", explicou ao P2 o próprio Bachir

a Jajouka, povoação do noroeste de Marrocos, nas montanhas do Rif, fundada no século VIII. Por ela passou Sidi Ahmed Sheikh, homem santo incumbido de pregar o Islamismo. Jajouka seria apenas um ponto de paragem no seu percurso, mas Sidi Ahmed Sheikh não mais abandonou a aldeia de pastores. Porquê? Porque alguns dos pastores não eram apenas pastores. Eram também músicos, todos membros da família Attar - e a sua música era especial. Tanto que o santo muçulmano ficou para que lha ensinassem e, em troca, abençoou-os com a sua "baraka" [poder espiritual]. 1300 anos depois, o túmulo de Sidi Ahmed Sheikh, é local de peregrinação para quem procura curar dores do corpo e do espírito. 1300 anos depois, os músicos de Jajouka, os Attar, continuam a tocar para o santo. Treze séculos depois, os Master Musicians Of Jajouka não tocam apenas para o santo ou, como no passado, para famílias reais marroquinas. Não é por acaso que esta noite estarão pela terceira vez em Portugal, em concerto integrado no Ciclo Paul Bowles promovido pelo Centro Cultural de Belém. Foi o escritor americano o que primeiro segredou o nome a ouvidos ocidentais. Depois Brion Gysin e William Burroughs fizeram o mesmo, depois Brian Jones, dos Rolling Stones, gravou-os um ano antes da sua morte, em 1968, e do registo nasceu um álbum editado postumamente. Lentamente, na segunda metade do século XX, o segredo de Jajouka deixou de o ser.
"Ouçam a música, os sons primevos. Ouçam com todo o vosso corpo, deixem a música penetrar-vos e transportar-vos, e ligar-se-ão à mais antiga música na terra". Assim apresentou William Burroughs, "padrinho" da geração beat americana, a música dos Master Musicians of Jajouka. Conheceu-os nos anos 50, pela mão do pintor e escritor inglês Brion Gysin e não mais a esqueceu - Bachir Attar, o líder do grupo, dir-nos-á desde Jajouka que Burroughs escreveu O Festim Nu ao som da sua música. Brion Gysin, depois de os ouvir pela primeira vez, foi peremptório: "Esta é a música que quero ouvir até ao fim dos meus dias" - na década de 50, de forma a tê-la sempre por perto, abriu um restaurante em Tânger, o 1001 Nights, e empregou os músicos de Jajouka como banda residente.
Quando Brian Jones gravou os Master Musicians Of Jajouka, no período turbulento em que se consumava a sua saída dos Stones, terá exclamado: "Encontrei o que queria". Paul Bowles foi mais longe que a satisfação pessoal. Bachir Attar, que durante cerca de década e meia dividiu a sua vida entre Jajouka e Nova Iorque, onde actuava no circuito de jazz e world music, explica que a mudança parcial para os Estados Unidos se deve ao Bowles: "Escreveu uma carta à Embaixada Americana em Rabat, argumentando que me devia ser concedido um visto para ir mostrar na América a minha música e a música da minha família; que me devia ser concedido um visto para que esta música fosse salva".
De pai para filho
Que tem afinal a música dos Master Musicians of Jajouka para que Bowles e Burroughs se tenham apaixonado por ela, para que Brian Jones a tenha gravado, para que Ornette Coleman, John Lennon, Donovan, Peter Gabriel, Lee Ranaldo, dos Sonic Youth, ou Joe Strummer, o vocalista dos Clash, tenham ido no seu encalço? Que tem esta música que Sultões acolhiam na corte e exigiam ouvir ao adormecer e acordar, esta música transmitida de pai para filho - e apenas de pai para filho e apenas na família Attar - ao longo de 1300 anos?
Bachir Attar, nascido em 1964, filho de Hadj Abdessalam Attar, o líder dos Master Musicians Of Jajouka quando da descoberta por ouvidos ocidentais (falecido em 1982), dá-nos algumas pistas. Diz-nos, por exemplo, que um adulto não a pode aprender - ele começou aos quatro anos. "Tens que a amar, envolver-te nela, falar com ela. Só então a podes "adquirir"" - um adulto, deixa subentendido, já tem o mundo demasiado definido para decifrar a linguagem destes sons. Para Bachir é tudo muito simples: "É difícil de aprender porque é um "dom mágico" oferecido à nossa família". Continua: "Não é música que se componha ou transcreva. Pode-se aprender qualquer tipo de música, rock"n"roll, clássica, o que seja", no caso de Jajouka, "tem que se viver na música. É diferente da música europeia e da música arábica. Existe sozinha e está sozinha".
Decifremos-lhe a singularidade. Quem estiver esta noite no Centro Cultural de Belém, verá um grupo que pode atingir a dezena de músicos, divididos entre ghaita (familiar árabe do oboé), a lira (flauta de bambu), o gimbri (alaúde três cordas) e percussões marroquinas. A música que criam, fortemente hipnótica, desenvolve-se numa dinâmica que apenas os músicos parecem dominar totalmente. Num momento são as ghaitas a harmonizarem-se em ondas sonoras estridentes, noutro são já as liras que nos transportam para um onírico bucolismo ou o mágico gimbri que rodopia, encantatório - tudo isto enquanto as percussões conduzem a intensidade do ritual: torrente ininterrupta entre o êxtase e a discreta definição do ambiente.
A dança de Boujeloud
Brian Jones chamou ao álbum que gravou com os Master Musicians of Jajouka, editado postumamente em 1971, The Pipes Of Pan At Jajouka. O título surge por se defender que a música do grupo recua aos rituais de Pã romanos, realizados anualmente para pedir aos deuses boa sorte e fertilidade. O êxtase da música dos Jajouka - considerados inadvertidos precursores da música trance - virá daí, com a figura de Pã substituída pela do islâmico Boujeloud, um homem, coberto de pele de cabra, que dança ao som da música - o público do CCB verá certamente os músicos do grupo entregarem-se à dança, componente essencial da sua expressividade.
Afirma Bachir Attar que são muitas coisas a música dos Master Musicians Of Jajouka, confluência de sons da bacia do Mediterrâneo sublimados numa pequena vila marroquina: "é música sufi [o sufismo é a vertente mística do Islão], música para curar, música para a paz. Transforma os estranhos em familiares e devolve a humanidade aos loucos".
Bachir fala-nos de tudo isto, no seu inglês de sotaque árabe carregadíssimo, enquanto caminha por Jajouka. De tempos a tempos, ouvimos um burro a zurrar, ouvimos o latir de alguns cães e ele, que fala muito alto, a pedir-nos que falemos ainda mais alto. Bachir já não passa metade do ano em Nova Iorque. "Depois do 11 de Setembro, sempre que eu e o meu irmão queríamos apanhar um avião, tínhamos problemas. As vezes que tivemos que explicar à polícia que nos chamávamos Attar, não Atta [Mohammed Atta foi um dos terroristas envolvidos no 11 de Setembro]. Neste momento, é perigoso estar naquele país...", suspira. Foi portanto a tempo inteiro em Jajouka que viu chegar a luz eléctrica - cortesia de uma rede de telemóveis marroquina -, que viu chegar a televisão e os DVDs. É desde ali que se queixa de haver maior interesse pela sua música por parte dos estrangeiros que dos habitantes de Jajouka: "Há muitos anos que toco para eles, há muitos anos que não percebem". Nada de trágico.
Nada parece trágico para Bachir Attar: é apenas o mundo que se transforma. Pensamos isso quando nos diz: "Trabalhei toda a minha vida e tenho apenas um carro para viajar. Mas enriqueci o meu coração. Vivo debaixo de árvores mas sinto-me num castelo". Uma serenidade desarmante que temos por certo quando nos confessa, sem angústia visível: "Acho que somos a última geração. Os filhos vão para a escola e não querem seguir esta vida de músicos. É muito difícil para eles. Estamos a salvá-la por agora, para esta geração, mas todos os músicos que estão comigo são velhos [Bachir, o líder, é um dos mais novos membros do grupo]". O mundo pula e avança e, nesse movimento, chegará até o dia em que a "mais antiga música na terra" deixará de se fazer ouvir.

Sugerir correcção