11 actores fazem inventário (mas não anedotário) do falar beirão

Inês Nadais

a Há Gil Vicente para além das Beiras - a Lisboa de má vida do Auto da Índia e os sucessivos cais alegóricos da trilogia das Barcas, a mais singular terra-de-ninguém do teatro português - mas há muita etnografia das Beiras em Gil Vicente: elas são o lugar-comum onde a "fantesiosa" Inês Pereira encontra o analfabeto funcional Pero Marques, onde este se torna juiz e (aqui já estamos a supor) onde a filha dele dispensa Gonçalo porque ele a aborrece "como o cu do nosso galo".É precisamente nesse lugar-comum, o centro geográfico do nosso mundo, que 11 actores do Teatro Nacional S. João (TNSJ) se encontram desde ontem para ler o que dizem os papéis - mas com sotaque.
Aproximação a Gil Vicente pela porta do fundo do falar beirão, seja lá o que isso for, Beiras - tríptico que inclui A Farsa de Inês Pereira (1523), A Farsa do Juiz da Beira (1525) e Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela (1527) - é uma leitura encenada a caminho de se transformar num espectáculo definitivo.
Já não falta muito: os actores ainda precisam do papel para saber a próxima deixa, mas mais como adereço do que como objecto de trabalho. "É como se estivéssemos a assistir a um ensaio geral de um espectáculo - um ensaio em que denunciamos por onde iríamos se estivéssemos a fazer um espectáculo perfeitamente acabado", explica Nuno Carinhas, o encenador.
Não estão (não há cenário, apenas umas peças de mobiliário: por trás da parede falsa está outra produção do TNSJ, O Saque, que entra em reposição na próxima sexta-feira), mas podem vir a estar: esta leitura encenada está quase lá. "Presume-se que numa leitura encenada a palavra está mais presente do que o resto. Só que, com a prática, o corpo cede e salta naturalmente para o palco. Isso acontece também porque o Gil Vicente não é um autor exclusivamente literário - é um autor para ser representado", acrescenta.
Questão de elocução
Aqui eles (Alberto Magassela, Alexandra Gabriel, António Durães, Emília Silvestre, Hugo Torres, João Castro, Jorge Mota, José Eduardo Silva, Lígia Roque, Paulo Freixinho e Pedro Almendra) representam (e não são nada minimalistas: há momentos em que esta leitura encenada se transforma num musical, há festa na aldeia), mas boa parte dessa representação é elocução. Era essa a ideia: que Beiras fosse um inventário (mas não um anedotário) do falar beirão, um património linguístico que o próprio Nuno Carinhas considera nebuloso.
"Não se sabe muito bem o que é o falar da Beira ou mesmo o falar da Serra da Estrela, que ainda hoje é um lugar de confluência de linguagens do Norte e do Sul. É uma língua mais ou menos esquecida, e a mim dá-me prazer ouvir uma coisa que está muito longe. Mas há um padrão que o [linguista] João Veloso fixou e a partir do qual trabalhámos. Hoje, seja para fazer um anúncio de telemóvel ou uma revista, usa-se muito uma pronúncia caricatural, miscigenada, da Beira, do Norte e do Alentejo. Eu não quis nunca correr esse risco", diz.
Se tiverem uma segunda vida, estas Beiras talvez cheguem às Beiras (por enquanto é mais Douro Litoral) - e "seria um bom teste". Nuno Carinhas está com ideias: esta é uma versão in progress, ele não dirá que não se lhe encomendarem os acabamentos (e se lhe derem o palco todo para ele cenografar, de momento sente-se um ocupa do cenário que o artista plástico Pedro Tudela criou, muito televisivamente, para O Saque): "A Serra da Estrela é um dos tectos do mundo e eu gostaria de ter à minha disposição essa vastidão que é o palco aberto". Caso não haja mais nada, já houve qualquer coisa: "Trabalhar com o texto na mão é um óptimo exercício para os actores". É por ser tão divertido para eles que é tão divertido para nós.

Beiras, a partir de Gil Vicente, pelo Teatro Nacional S. João. Encenação de Nuno Carinhas.PORTO. Teatro Nacional S. João.
Até 23 de Março. De 2ª a 6ª, às 15h. Bilhetes entre 2,50 e cinco euros.

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