Torne-se perito

Papon: a morte de um colaboracionista tranquilo

Apesar das provas que o implicavam na morte
de 1690 judeus, o antigo segundo mais alto responsável de Bordéus morreu sem assumir a culpa

a Durante anos conseguiu esconder o passado colaboracionista, os judeus que ajudou a perseguir e a matar durante a ocupação nazi da França. Mas um dia este passado veio ter com ele, e foi o fim de uma vida tranquila, levada até ao fim sem sombra de culpa. Chamava-se Maurice Papon e morreu sábado aos 96 anos, durante o sono - com o mesmo sossego com que viveu. "Pôde morrer com toda a calma, o que não foi o caso de todos os que mandou para a morte", disse amargo, à AFP, Benjamin Abtan, presidente da União dos Estudantes Judeus da França, numa declaração retomada por toda a imprensa. "Será lembrado não só como um criminoso mas também como um símbolo da responsabilidade do Estado francês na tentativa de destruição dos judeus na Europa", sublinhou.
O passado foi ter com Papon, um dois franceses condenados no país por colaboracionismo - o outro foi Paul Touvier, condenado em 1994 - quando, no dia 6 de Maio de 1981, um médico, Maurice David-Matisson, descobriu que fora ele que mandara oito familiares para as câmaras de gás. Publicada no jornal satírico Canard Enchaîné, a história causou logo alvoroço por se tratar de uma figura pública, para mais membro do Governo do Presidente Valéry Giscard D"Estaing, e por virem aí eleições. Mas demorou 17 anos a fazer caminho até à condenação.
Ligado a Chirac e De Gaulle
O ministro do Orçamento, um antigo colaboracionista? Cúmplice da morte de centenas de judeus franceses? Provar-se-ia que sim. Provar-se-ia que o pacato funcionário público, o segundo mais alto responsável da região de Bordéus durante o regime de Vichy, entre 1940 e 1944, fizera embarcar na gare de Saint-Jean da cidade, entre 1942 e a expulsão dos alemães, 1690 judeus para os campos de extermínio.
Maurice Papon atravessou o fim da guerra a III à V República, como outro cidadão qualquer, fazendo uma tranquila carreira nos serviços do Estado, e por fim na própria política. Foi prefeito de Constantina, entre 1956 e 1958, durante a guerra da Argélia, e da polícia de Paris, entre 1958 e 1967, período em que ocorreu a sangrenta repressão de uma manifestação de argelinos na capital francesa, era então Presidente o general De Gaulle. Foi este aliás que lhe deu a cruz de comandante da Legião de Honra.
A seguir foi por algum tempo presidente da Sud Aviation, em 1967, a sua última ocupação antes de entrar, em 1968, na UDR (União dos Democratas para a República, direita) e, como deputado, na Assembleia Nacional, depois do que foi ministro do Orçamento, agora já sob a presidência de Giscard D"Estaing. Era o cargo que ocupava quando David-Matisson o acusou da morte dos familiares.
Base primeira da queixa: vários documentos com data de 1943, 44 deles assinados pelo segundo antigo responsável de Bordéus, sobre a deportação de judeus da região, a mesma onde três anos antes o cônsul português Aristides de Sousa Mendes livrara largos milhares das câmaras de gás.
Mas o arranque dos processos foi muito difícil, derrapando nos interesses políticos. Foram anos negros para os queixosos, escrevia ontem o Libé. François Mitterrand está no Eliseu e Albin Chalandon, pró-Papon, na chancelaria. A magistratura que mergulha os olhos no caso apercebe-se que o zelo pode afectar o seu avanço. O procurador-geral de Bordéus segreda aos advogados que "a questão releva de um tribunal superior de justiça, não de um tribunal criminal".
Até Mitterrand empatou
Ao mesmo tempo, somam-se os artifícios para emperrar os esforços dos queixosos. Em 11 de Fevereiro de 1987, a quase totalidade do processo é anulada por um tribunal de recurso. A explicação foi "puxada pelos cabelos", explicava ontem um especialista, por ter aparecido pelo meio um prefeito, Maurice Sabatier, na altura dos factos superior do arguido, a assumir todas as responsabilidades. Ora, como então a lei não permitia o julgamento de funcionários daquele nível, o dossier passou para um tribunal inferior para recomeço da instrução, e o caso entrou em coma. Sobrou pouco ou nada. Mentor da trama: Albin Chalandon.
Mas a instância a que fora entregue o processo não ficou parada, e um juiz, François Braud, acusa formalmente Maurice Papon, no dia 8 de Julho de 1988, de crimes contra a humanidade. Acusa também Maurice Sabatier, mas este morre pouco depois, aos 92 anos.
O caso prosseguiu, ainda pejado de rasteiras e manobras dilatórias, uma delas do próprio Presidente Mitterrand, que veio a reconhecer ter tentado também travar a máquina, acabando com a condenação do réu no dia 2 de Abril de 1998 a dez anos de prisão.
Encarcerado durante três anos, Papon, que nunca aceitou a sua condenação, recorrendo dela, em vão, foi libertado por motivos de saúde em Setembro de 2002. Sofria dos problemas de coração que o vitimaram sábado. Quando dormia.
"Maurice Papon bateu-se até ao fim e morreu como um homem livre quando se preparava para o seu último combate: uma acção de reabilitação", disse o seu defensor, Francis Vuillemin.
"Papon nunca compreendeu e nunca admitiu o que fez. Permaneceu fechado no seu desprezo e altivez, e nunca admitiu o que fez", disse ao Le Monde o advogado das 27 partes civis do processo, Gérard Boulanger.

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