Entre o feio e o belo

Com o inevitável grau de falibilidade que a convocação de dados históricos acarreta, verificamos que esta é somente a segunda vez que se apresenta um Macbeth de William Shakespeare no Teatro da Trindade (a primeira terá sido Macbeth, Uma Tragédia Ibérica, uma adaptação de Julio Salvatierra para o Teatro Meridional, em 1998). E este Macbeth de Bruno Bravo acusa desde logo a temeridade do feito. Além disso, é também a primeira vez que este sensível e criativo encenador se vê a braços com um texto de Shakespeare, numa grande produção, habituado que está ao desenho íntimo dos Primeiros Sintomas, grupo do qual é director artístico.Com efeito, a primeira cena do espectáculo - com as Bruxas - ecoa desde logo os jogos polifónicos, a cacofonia orquestrada e as brincadeiras fonéticas que encontramos noutros trabalhos do encenador. Contudo, estes ecos rapidamente se dissiparão, deixando este Macbeth um espectáculo órfão de identidade. Nunca se chega de facto a responder às questões: que Macbeth é este? Que leitura do texto de Shakespeare se concretiza com este espectáculo?
Plasticamente o espectáculo é muito forte: tem uma tonalidade de romance gráfico ou de banda desenhada, traçado a grosso, visceral e de um gosto irrepreensível. Os figurinos instalam bem a cena da "peça escocesa", dando às personagens um ar primitivo e grosseiro (à excepção, claro está, dos vestidos requintados de Lady Macbeth, que garantem a Valerie Braddell - e um pouco à revelia da lógica interna do espectáculo - um lugar nas galerias das grandes divas intérpretes de Shakespeare...).
Os cenários são, na sua maioria, criados por projecções que dão uma grande dinâmica a todo o espectáculo; para além de darem uma leveza ao palco, dado que, à excepção de umas poucas cadeiras ou de uma grande mesa de jantar, nunca há muitos objectos em cena. E isto remete a centralidade da acção para o jogo dos actores. Mas, mais uma vez, algo falha. O elenco tem prestações muito heterogéneas e desequilibradas. Valerie Braddell e António Rama exageram num registo declamatório que transporta consigo séculos de respeito excessivo e uma vassalagem nada criativa à palavra (e ao nome) de Shakespeare. Cristina Carvalhal inunda o palco do Trindade com a sua voz melódica enquanto que a presença esmagadora de Diogo Dória e a sua voz clínica constroem momentos de grande fulgor cénico. Mas descobrimos verdadeiro gozo pela coisa teatral nos elementos do elenco mais criativamente cúmplices do encenador: Anabela Brígida, Sérgio Praia e (sobretudo!) Bruno Simões oferecem-nos interpretações descomplexadas, frescas e de um rigor ímpar, vibrantemente irónicas - (memorável o Seyton de Simões).
No meio de tudo isto está João Lagarto/Macbeth, que volta aqui a não expressar toda a vasta paleta dos seus recursos interpretativos (que sabemos invulgarmente rica), brindando-nos com uma interpretação que vai do sofrível ao inesquecível, do alheado ao pungente.
Uma última nota: pode até nem caber nestas linhas, mas não será demais referir a pobreza (nada franciscana) do programa do espectáculo - desinteressante, redundante e oco.

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