Tintim

Aprimeira vez que o vi, de trajes desportivos, transpirado ma non tropo, com ar sorridente mas esforçado, calmo, rodeado de assessores e seguranças, algures entre Central Park, o Alto da Pimenteira e a Praça de Tiananmen, pensei imediatamente: "É o Tintim"! Basta levantar ligeiramente os cabelos da frente, de modo a fazer jeitosa poupa, e logo teremos o herói da banda desenhada que nos acompanha desde pelo menos os anos quarenta. Aquele ar a meio caminho entre o angélico e o determinado fica-lhe a matar. É um bom ícone eleitoral. Ainda por cima, seguido por uma trupe de pessoas que podem muito bem ser equiparados aos impagáveis companheiros do jornalista belga.

SÓCRATES ESTÁ FORA E acima dos seus ministros e dos seus problemas. Reserva para si o lado heróico. Denuncia privilégios, ameaça médicos, atinge juízes, aponta aos professores, acusa funcionários públicos, deixa organizar as emboscadas aos dirigentes desportivos e concebe o cerco aos autarcas. Depois, os ministros que resolvam. Tal como Tintim, tem apenas de tratar de algumas trapalhadas que os seus colaboradores inventam dia após dia. Quem não recorda os sarilhos que o Capitão Haddock (antigamente, no meu tempo, Capitão Rosa), os estúpidos detectives Dupont e Dupond (antes Zigue e Zague) e o formidável Professor Trifólio Girassol (anteriormente Professor Pintadinho de Branco...) lhe preparam todos os dias? Parece brincadeira, mas é muito sério. Pedra a pedra, imagem a imagem, Sócrates e os seus conselheiros construíram uma personagem, talvez a mais bem conseguida e mais artificial de toda a política democrática portuguesa. Nessa personagem, o jogging, o caderno Moleskine ou o tele-pronto transparente, introduções suas na política nacional, são apenas peças de mais vasto desígnio. Estão de parabéns os seus consultores: ninguém, até hoje, fez melhor. No que são ajudados pelos talentos do interessado, pois claro. Mas atenção! A repetição da imagem, devidamente preparada e solicitamente anunciada à imprensa, acaba por matar.

NA MESMA SEMANA EM QUE o Primeiro-ministro vai à China, logo a seguir a ter ido à Europa, e enquanto se prepara para ser o Presidente da União, as notícias portuguesas continuam a mostrar os desastres caseiros. O caos judicial e a degradação do sistema de justiça prosseguem diante de todos, mas o herói nada tem a ver com isso. São publicados os resultados da avaliação do ensino básico e secundário, que revelam a calamidade instalada, visível nas taxas de insucesso e de abandono a oscilar entre os 30 e os 50 por cento, mas o impoluto combatente não é tido nem achado. Apesar de o Sistema Nacional de Saúde não parecer ameaçado nos seus fundamentos, a verdade é que, com as taxas moderadoras em intervenção cirúrgica ou internamento e os aumentos de medicamentos que devem pagar os doentes idosos, há qualquer coisa que não está certa na administração da saúde, mas esses aspectos do economato não interessam particularmente ao cavaleiro andante. Os capitalistas portugueses zangam-se, associam-se a grupos internacionais, quase se insultam e procuram morder as jugulares uns dos outros, mas evidentemente nada disso diz respeito ao seráfico maratonista. Os preços dos bens de serviços básicos, como a electricidade, o gás e os combustíveis, aumentaram duas a três vezes mais do que a inflação e quatro a cinco vezes mais do que os salários, mas, uma vez mais, essa minudência não perturba o sono etéreo do nosso valente líder. O paralelo com o popular Tintim é gritante: o jovem militante das boas causas derrota impiedosamente os inimigos. Mas há diferenças: a Tintim, ninguém lhe pedia para depois administrar a casa ou o país. Mais: Tintim não ia a votos. Sócrates, mais tarde ou mais cedo, terá de ir.

JÁ SE PERCEBEU QUE SÓCRAtes vai querer alicerçar uma reputação internacional. Como Tintim. Por brio pessoal, com certeza. Por orgulho e curiosidade, como acontece sempre. Mas também, como é frequente, para trazer mais-valias pessoais e políticas para o país. Ou antes, para si, cá dentro. A visita à China não lhe saiu muito bem (as declarações disparatadas de Manuel Pinho não ajudaram muito). E a presidência da União, ponto alto desta sua estratégia, já se anuncia cinzenta. A cimeira entre a Europa e a África está difícil e, mesmo que se faça, dela já nada se espera de importante, a não ser uns apelos à paz e à generosidade. A senhora Merkel já lhe tirou todas as hipóteses de brilhar: será ela e a Alemanha que se ocuparão da questão constitucional e das instituições. A ideia de ir ao estrangeiro buscar méritos é sempre tentadora. Dá menos maçadas, não há sarilhos, custa mais barato e fica-se com a impressão de que basta dizer umas palavras bem colocadas para se obter êxitos rápidos. Há muitos exemplos de políticos que foram ao estrangeiro buscar algo que lhes faltava dentro do país. De Gaulle fez isso. Fidel Castro também. Margaret Thatcher não dispensou. Acontece que as circunstâncias é que mais ordenam. A inteligência, a encenação, a fotografia e a palavra não chegam. É preciso mais do que isso. É preciso um país, força, poder, uma grande querela ou aliados.

O QUE SE PASSOU ESTA SEMAna com os números da educação é talvez o mais importante. Nada demoverá os governantes. E nada os fará ver a realidade. A educação é prioritária, ponto final. A certeza substitui o pensamento. Tem de ter dinheiro. E muitos discursos. Há décadas que isto dura e não se vê resultado à altura da retórica. Mas Sócrates, tal Guterres ou Tintim, não se preocupa com os pormenores. Nem quer saber se os resultados correspondem ao esforço feito. Muito menos se é necessário alterar políticas ou estratégias. O discurso parece bastar. A famigerada TLEBS, já sobejamente condenada, tanto cultural, como científica ou pedagogicamente, permanece viva e não há meio de a liquidar pura e simplesmente dos programas. O problema é que há mais TLEBS. Muitas mais. Vejam-se os programas de quase todas as disciplinas e de quase todos os anos do currículo. Veja-se, por exemplo, como um aluno de 10 anos, do 5º do básico, tem de aprender tudo sobre os ambulacrários dos equinodermes, assim como sobre as palminérveas ou as fasciculadas tuberculosas. Há TLEBS aonde menos se espera. Os programas das escolas e, em consequência, os seus manuais, são desajustados e parecem destinados a provocar o insucesso, a levar à desistência ou, nos casos mais felizes, a serem esquecidos dias depois de terem sido aprendidos. Mas o Primeiro-ministro não quer saber da TLEBS. Tintim também não.

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