Os tribunais plenários e a memória necessária

Uma lápide marcará, a partir de hoje, o local onde a ditadura realizou os tribunais plenários. Um insulto à justiça que não pode ser esquecido

Se alguém perguntar a um jovem de 20 ou mesmo 30 anos o que é um tribunal plenário, talvez responda que se trata de uma assembleia de juízes ou talvez mesmo de um tribunal cheio. Raros saberão do que, na verdade, se tratava essa instituição policial disfarçada de fórum justicialista. Era apenas isto: uma farsa criada pelo regime de Salazar, com a cumplicidade activa de numerosos juízes, para "legalizar" o mais puro arbítrio. As sentenças não eram preparadas nem escritas pelos juízes: já vinham escritas da polícia política, a PIDE-DGS, que decidia das penas a aplicar. Os alvos de tais encenações judiciais eram os adversários políticos do regime, que ali chegavam a ser espancados sem que juízes ou outros funcionários interviessem em seu favor. Se a PIDE os queria presos e ao seu inteiro dispor por meses ou anos, o juiz assinava, obediente e fiel servidor.A farsa durou muitos anos e fez muitas vítimas: os que, dali, eram conduzidos (ou reconduzidos) às masmorras de Caxias ou do Aljube, bem como a novas sessões de tortura. A constituição, em 1969, já com Marcelo Caetano no poder, da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) foi um importante passo no sentido da denúncia pública destas injustiças, mas não as travou. Um antigo colaborador da CNSPP deixou em Agosto na Internet (naoapaguemamemoria.blogspot.com) este testemunho: "Essa denúncia pública teve lugar, designadamente, nos tribunais plenários, por ocasião dos julgamentos. Aí as vítimas da [PIDE] e os seus advogados repetidamente denunciaram os métodos bárbaros de interrogatórios praticados pela polícia política, as sevícias, as torturas, os espancamentos, as prisões e buscas sem mandado, enfim, toda a casta de ilegalidades, que os juízes desses tribunais, bem como os agentes do Ministério Público, sempre acolheram com indiferença."
Hoje, por iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória, vai ser descerrada pelas 17h30 uma lápide no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, onde funcionaram de 1945 a 1974 tais "tribunais". Lá estarão Edmundo Pedro, Nuno Teotónio Pereira, António Borges Coelho e o ex-Presidente Mário Soares, este na qualidade de decano dos advogados de defesa dos presos políticos. Irmanados por esses tempos de resistência ao arbítrio, deixarão ali, para a história e para o futuro, os seus testemunhos.
Em Novembro de 2005, num blogue (castelodevide .blogspot.com), o escritor Alfredo Margarido afirmava que os juízes ao serviço da ditadura "consideravam os antifascistas como uma espécie perigosa, de cuja erradicação dependia não só o destino do aparelho político, mas também o dos juízes. Será necessário lembrar que ainda se não ouviu, desde Abril de 1974, uma qualquer tentativa de análise desta perversão, que tão profundamente marcou não só a vida de milhares de cidadãos, mas sobretudo, e mais negativamente, a própria vida nacional?" E interrogava-se: "Será crime evocar o passado pouco entusiasmante dos juízes e dos seus Tribunais Plenários?" Alguém entendeu evocá-lo agora, ainda a tempo. Para que se saiba. Para que se não esqueça.

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