Torne-se perito

Poeta genial

Foi o expoente máximo do surrealismo português. Esta declaração irá fatalmente abrir quaisquer verbetes que a futura historiografia literária venha a dedicar a Mário Cesariny. No entanto, na sua factualidade, esta associação ao surrealismo acaba por impedir que se diga desde logo o óbvio: que estamos perante um dos nomes cimeiros da poesia portuguesa de todos os tempos. E que não deixaria de o ser mesmo se rasurassem da sua obra todos os poemas (e eles existem) indiscutivelmente surrealistas. Em sentido estrito, já que no peculiar sentido lato em que o entendeu o próprio Cesariny - para quem o surrealismo, mais do que ter tido precursores, sempre existiu -, pode-se lá pôr, ou tirar, mais ou menos tudo o que se queira. Se Cesariny foi um grande poeta, foi-o principalmente pelas razões pelas quais os grandes poetas costumam sê-lo: a capacidade de inovar, um domínio absoluto da língua, um conhecimento profundo da tradição literária, uma voz singular e uma imaginação prodigiosa, para referir apenas algumas das suas virtudes mais evidentes. No seu caso, é ainda legítimo acrescentar que foi um génio, desde que entendamos que a palavra não se destina a superlativizar a qualidade do que escreveu, mas apenas a apontar para determinadas características da sua criação. Quando lemos alguns dos mais notáveis poemas de Cesariny, damos por nós a perguntar: "Mas de onde é que raio veio isto?" E suspeitamos de que nem o autor faria a menor ideia. É talvez por aqui que passa aquilo a que chamamos génio, ou inspiração. Acresce que, ao contrário de outros poetas, que nunca esconderam que a sua obra devia pelo menos tanto à transpiração como à inspiração - não foi por acaso que Carlos de Oliveira compilou os seus poemas reescritos sob o título Trabalho Poético -, Cesariny sempre entendeu a poesia como uma espécie de possessão mediúnica, e daí a sua simpatia por poetas nos quais pressentia essa afinidade, como Gomes Leal, Pascoaes ou Sá-Carneiro, a quem, já em 1952, dedicou um poema cujos versos finais poderiam bem servir de epitáfio a si próprio: "desembarcou como tinha embarcado//Sem Jeito Para o Negócio."
É também essa convicção de que não vale a pena escrever poesia por determinação ou disciplina que justifica o facto de Cesariny ter passado longos anos quase em silêncio, após ter publicado o essencial da sua obra nos vinte anos que vão de Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952) a 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres (1971).
Todavia, também a imagem de Cesariny como protótipo do poeta inspirado, demiúrgico, acaba por ser redutora, quer porque deixa na sombra uma mestria técnica que, além de talento, implicou seguramente muito trabalho, quer pelo visível diálogo que muitos dos seus poemas travam com a obra de outros poetas, e em especial com a de Fernando Pessoa, desde o Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, de 1953, ao seu último livro, O Virgem Negra (1989; 2ª edição aumentada, 1996), uma desvairada, e muitas vezes brilhante, paródia à mitificação da obra e persona pessoanas.

O mágico das mãos de ouroCesariny publicou o seu primeiro livro, Corpo Visível, em 1950, e muitas das marcas posteriores da sua poesia estão já aqui: a centralidade do corpo, a revolta contra as convenções, a alternância de imagens inesperadas e de descrições realistas, uma vigilância prosódica eficaz a ponto de não se dar por ela. Já o humor, absurdo, sarcástico ou negro, que será uma outra característica fundamental da sua poesia, só aparece dois anos depois, com os inventários de Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano: "(...) a outra viagem por mar/ o jovem que já é livreiro/ a camionete a esmagar/ o túmulo de Sá-Carneiro (...)."
Mas é com Manual de Prestidigitação (1956) que Cesariny passa a ser, não apenas um executante hábil e original do surrealismo, mas um poeta maior ao qual já não faz sentido acrescentar quaisquer rótulos, mesmo que seja ele a colá-los. Pense-se, por exemplo, no "discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro", um desses poemas a propósito dos quais é difícil não falar de génio: "Despe-te de verdades/ das grandes primeiro que das pequenas/ das tuas antes que de quaisquer outras/ abre uma cova e enterra-as/ a teu lado (...)". Neste e no livro seguinte, Pena Capital (1957), reúnem-se alguns dos seus melhores poemas: Vinte quadras para um dadá, a um rato morto encontrado num parque, o jovem mágico, you are welcome to elsinore ou a antonin artaud. Foi também neste período, apesar de todas as suas cirúrgicas sabotagens do que ameaçava poder tornar-se grandiloquente, que Cesariny esteve mais perto de estar dentro dessa Literatura da qual sempre afirmou que se devia procurar sair.
Até ao final dos anos 50, edita ainda Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação Pelo Autor e Nobilíssima Visão, com a sua cáustica "Litania para os tempos de revolução" - "Burgueses somos nós todos/ desde pequenos/ burgueses somos nós todos/ ou ainda menos (...)".
No mesmo ano em que publica Planisfério e Outros Poemas (1961), sai ainda Poesia (1944-55), o primeiro dos sucessivos momentos em que baralhará toda a sua obra anterior, revendo, rasurando e acrescentando poemas, e mudando-os de uns livros para outros. Um jogo que prossegue em Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972) e nas Obras de Mário Cesariny que a Assírio & Alvim vem publicando desde 1980, e que agora se tornaram, por razões de força maior, a fixação definitiva da sua obra poética.
Em 1965, sai A Cidade Queimada, cujo conjunto O Navio de Espelhos é outro ponto alto da sua poesia, e em 1971 publica 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão seguidos de Poemas de Londres. Pertencem a esta última série poemas como o estranho soneto de amor outra coisa ou esse magnífico shafftsbury avenue, que abre com o verso "Vi um anão inglês e fiquei perturbado".
A reedição da sua poesia na Assírio & Alvim inicia-se com
Primavera Autónoma das Estradas (1980), que, a par de um grande número de dispersos, recolhe ainda um conjunto significativo de inéditos. E em 1989 Cesariny regressa com o já referido Virgem Negra, um livro divertidíssimo e ligeiramente hard core, onde pega em poemas célebres de Pessoa e os cesariniza. Nada de muito diferente do que fez com o surrealismo, com as redondilhas populares, ou com tudo aquilo em que tocaram as mãos de ouro deste jovem mágico.

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