Torne-se perito

Sebastianismo, um mito cheio de mistérios

A ideia de que apareceria um salvador para restaurar a independência de Portugal, ou para regenerar o prestígio do país nos séculos XV e XVI, surgiu porque a morte de D. Sebastião, aos 24 anos, esteve sempre envolta em mistério. O mito do 16º rei de Portugal, que nasceu dias depois do pai morrer, daí ser tão desejado, dura há 428 anos.

Paradeiro das ossadas é incertoD. Sebastião desapareceu a 4 de Agosto de 1578, na batalha de Alcácer-Quibir, em África. A precária identificação do corpo, que se degradava facilmente com o calor, alimentou as dúvidas quanto ao paradeiro do rei.
"Houve testemunhos da época, numa crónica do frade Bernardo da Cruz, de que viram o cadáver de D. Sebastião", conta a historiadora Maria Mota. "Uma conclusão dos relatos da batalha de Alcácer-Quibir é que nenhum sobrevivente português declarou ter visto morrer o rei", resume, por sua vez, a historiadora Maria Augusta Lima Cruz, da Universidade do Minho, na biografia D. Sebastião (Círculo de Leitores).
Ainda a 4 de Agosto de 1578, Mulei Ahmed foi aclamado o novo sultão de Marrocos: "No dia seguinte, em circunstâncias mal conhecidas, um corpo, identificado como o de D. Sebastião, foi trazido à presença do novo soberano", lê-se na biografia. "Apesar de bastante desfigurado, seria reconhecido como o rei português pelo seu moço de guarda-roupa, Sebastião de Resende (...). Ao fim do dia, e à luz das tochas, a identificação seria confirmada por um grupo de cativos constituídos por gente de qualidade (...)."
Passaram duas semanas desde o desastre em Alcácer-Quibir até à divulgação oficial da morte do rei - tempo suficiente para enraizar a convicção de que o rei estava vivo, escreve Maria Augusta Lima Cruz.
Em Dezembro de 1578, Mulei Ahmed mandou entregar em Ceuta os restos mortais, a pedido de Filipe II. Ficaram na Igreja da Trindade, depois passaram para a capela-mor da Sé e terão vindo para Lisboa, em Agosto de 1582, por ordem de Filipe II, já Filipe I de Portugal. Se os ossos no Mosteiro dos Jerónimos não forem de um homem entre os 20 e os 30 anos, então é certo que não é D. Sebastião quem está no túmulo.

Inscrições no túmulo perpetuaram a dúvida

Os dois epitáfios, em latim, do túmulo nos Jerónimos contribuíram para o mito do sebastianismo, ao levantarem a dúvida se é D. Sebastião que ali está. O primeiro dizia: "Se é verdade o que consta, neste túmulo jaz Sebastião,/ que dizem ter sido morto nas plagas africanas." Em 1682, esta inscrição foi substituída pela actual, do conde de Ericeira, aqui numa tradução do visconde do Botelho, no livro O Encoberto nos Jerónimos, de 1972: "Se pudermos dar crédito à fama, este túmulo conserva os restos de Sebastião,/morto nas plagas africanas/ mas não digas que é falsa a opinião dos que acreditam que ele ainda é vivo,/ porque a glória lhe assegura a imortalidade."

Uma floresta de diagnósticos para uma doença secreta

Espermatorreia? Cálculos renais? Simples uretrite? Ou gonorreia, transmitida por um pedófilo? Já se atribuíram todas estas maleitas a D. Sebastião, que têm subjacente uma polémica: "Teve, ou não, relações sexuais? A maior parte dos testemunhos diz que nunca perdeu a virgindade", conta Maria Augusta Lima Cruz.Os primeiros sinais de um problema médico terão surgido aos nove anos (em 1563). Fica a saber-se, numa carta do embaixador espanhol em Lisboa, D. Alonso de Tovar, que D. Sebastião expeliu "umas areias".
Em 1565, o embaixador continua a informar Filipe II de que o rei português teve febre, tonturas, desmaios e os médicos receavam que não pudesse ter filhos. Relata também o aumento da secreção expelida, a que chama "substância ou purgação". Frialdade no corpo era outro sintoma.
"A corte de Madrid mantinha-se actualizada sobre os receios e suspeitas das consequências da doença de D. Sebastião, fossem a infertilidade ou a impotência." O facto de D. Sebastião não ter tido filhos conduziu a coroa portuguesa para as mãos de Filipe II e de Espanha.
Numa carta para Catarina de Médicis, o embaixador francês em Castela, barão de Fourquevaux, designou a doença por "gonorreia", que incapacitaria o rei de ter filhos. Isto remete para uma doença sexual, causada por uma bactéria. Resta saber se foi designada assim por também originar pus, como a gonorreia.
Médicos e historiadores têm tentado fazer um diagnóstico da misteriosa doença que afectou, toda a vida, um rei que, aos 24 anos, não tinha casado. "A doença tê-lo-á intimidado em relação ao casamento", comenta.
Houve quem interpretasse o corrimento da uretra como um caso de "rebelíssima espermatorreia", como o médico espanhol Gregorio Marañon. E houve quem fosse mais longe, como o historiador norte-americano Harold B. Johnson: "(...) Defende que a doença de D. Sebastião não era outra coisa senão uma gonorreia transmitida por um pedófilo do seu círculo íntimo." D. Sebastião era homossexual, especula.
Para outros, Maria Augusta Lima Cruz incluída, os sintomas apontam para uma uretrite crónica, inflamação da mucosa da uretra. Pode ser infecciosa, sem ser adquirida por contacto sexual: um cálculo renal a passar pela uretra pode causar uma inflamação que acabe em infecção com corrimento. Leituras de cariz sexual parecem-lhe "abusivas". "Mas não as ponho de lado, não tenho provas."

Espermatorreia pode ser erro de tradução

O vocábulo "espermatorreia" existe mesmo. Aparece no Dicionário Médico da CLIMEPSI Editores, e em dicionários da língua portuguesa. Significa derrame de sémen involuntário, sem orgasmo. Mas Maria Augusta Lima Cruz diz que tudo pode não passar de má tradução. A confusão pode ter sido entre as expressões "substância ou purgação" (usada pelo embaixador espanhol) e "fluxo seminal" (adoptada do latim fluxum seminis, empregue por um cronista contemporâneo de D. Sebastião). A chave poderá estar num dos livros do Antigo Testamento, o Levítico, escreve Maria Augusta Lima Cruz: "O tema dos versículos 2 a 13 do capítulo 15 é a doença sexualmente transmissível e as expressão latinas semen e fluxus seminis referem-se ali a supuração e não a esperma."
Familiarizados com os textos bíblicos e o latim, o cronista e a entourage de D. Sebastião devem ter usado a expressão "fluxo seminal" mais com o sentido do Levítico, diz. Portanto, em vez de um corrimento de esperma, seria mais uma secreção purulenta. Que origem teria, é outra história.

ADN poderá revelar se problema era venéreo

A exumação do esqueleto de D. Sebastião poderá esclarecer a doença misteriosa de D. Sebastião, usando técnicas de análise genética para entrar na intimidade do rei. Se foi gonorreia, ou outra doença infecciosa, pode ser possível sabê-lo através de pedacinhos de ADN desses microrganismos que restem nos ossos, embora seja complicado isolá-los (como já é complicado extrair ADN dos próprios ossos do rei, morto há mais de 400 anos). Envolve o uso de técnicas sofisticadas, para contornar os problemas de contaminação por outros microrganismos, que não existem em todos os laboratórios de análise genética.Também se poderá procurar uma doença de origem genética que tenha afectado o rei. Mas tem sempre de haver um suspeito. "Não podemos estudar os 30 mil genes humanos para procurar todas as doenças", explica o geneticista Jorge Sequeiros, do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto.

Podia ter várias malformações corporais

Suspeita-se de que D. Sebastião não teria um corpo bem proporcionado. Tal é a frequência com que cronistas como frei Bernardo da Cruz ou frei Manuel dos Santos insistiram na "perfeição" e "simetria" da silhueta real que é caso para suspeitar, observa Maria Augusta Lima Cruz. Por outro lado, apareceu em Veneza um prisioneiro a dizer que era D. Sebastião, em 1598. Frei Estêvão de Sampaio foi encarregado de averiguar a veracidade das afirmações do "falso D. Sebastião de Veneza", como ficou conhecido, pelo que compilou uma lista de sinais do monarca português. "(...) Eram pouco lisonjeiros tanto para o rei como para o orgulho nacional." O lado direito do corpo maior que o esquerdo (a mão, o braço e a perna), o corpo curto da cintura para cima e longo daí até aos joelhos são algumas das anomalias físicas compiladas. Coxeava um pouco.
"D. Carlos de Espanha, duplamente primo co-irmão e, geneticamente, quase irmão de D. Sebastião, apresentava assimetrias e malformações semelhantes: um ombro mais alto do que o outro e a perna esquerda muito mais comprida do que a direita", relata a historiadora.
"O que mais poderá estranhar-se é que, no caso de D. Carlos, estas malformações tenham ficado sobejamente assinaladas, e que no caso de D. Sebastião as referências do mesmo tipo sejam raras."
Tais traços morfológicos podem ter sido minimizados porque os portugueses "construíram em torno de D. Sebastião a imagem de um predestinado, tocado pela graça divina e talhado para os grandes feitos que restaurariam o orgulho nacional".
Um exame antropológico aos seus restos mortais, refere Eugénia Cunha, antropóloga forense que integra a equipa, permitirá determinar rapidamente as proporções corporais.
Será que a grande consanguinidade na família de D. Sebastião - os pais dele eram primos direitos pelo lado paterno e materno - está por trás de uma silhueta imperfeita ou da doença mistério? "Quanto maior for a consanguinidade, maior é a possibilidade de uma doença genética, que se pode traduzir por malformações corporais", explica o geneticista Sérgio Castedo, da Faculdade de Medicina do Porto.
O risco de primos direitos só por um dos lados terem um filho com uma doença genética é de três por cento face à restante população (na qual o risco é já de três por cento). Por isso, o risco total acumulado é de seis por cento. Mas, se forem primos direitos pelos dois lados, então o risco "aumenta muito mais", adianta Sérgio Castedo.

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