Lisboa do kuduro encontra a Londres do dubstep

Um novo género musical londrino, o dubstep, é apresentado hoje pela primeira vez em Portugal.
Os anfitriões são os Digital Mystikz e Loefah. A apadrinhá-los o kuduro dos Buraka Som Sistema.
Há músicas da periferia no centro de Lisboa. Por Vítor Belanciano

Uma é celebradora, jubilosa, de letras maliciosas, lisboeta. O kuduro. A outra é mental, retorcida, parecendo reflectir uma neurose pós-milenar, londrina. O dubstep. São manifestações criativas provenientes da rua. São ambas música, mas também emblemas de contextos sociológicos locais. Vão encontrar-se, hoje, no Ateneu Comercial, perto do Coliseu, em Lisboa, na festa Big Bass. Nos últimos meses têm conhecido imenso protagonismo. O kuduro através dos Buraka Som Sistema. O dubstep por Kode9, Burial, Skream ou Digital Mystikz. "Contemplar a cara das pessoas nos concertos de Buraka é ver uma nova geração a aprender a dançar de outra forma, a ter prazer, sem aquele medo tão português da festa. Tardava em aparecer qualquer coisa assim. Qualquer coisa que desencadeasse uma ruptura estética, mas também social. Que fosse uma mistura desinibida de referências daqui", diz Marta Ferreira, uma das muitas portuguesas que nos últimos meses se tornou presença assídua nas sessões dos Buraka, o fenómeno mais inesperado a irromper no Portugal musical de 2006.
"É emocionante assistir ao parto de um novo som, mesmo para quem está por dentro dele, como eu", diz-nos por sua vez o inglês Mala, uma das metades dos Digital Mystikz. Serão eles, na companhia de Loefah e do declamador MC Sgt. Pokes, as grandes atracções da primeira grande festa das sonoridades dubstep em Portugal. "Ver as coisas a crescer, as pessoas a interessarem-se, a interrogarem-se: como se ouve isto? Como se dança isto? Que posso querer mais, do que assistir a um som a ser construído no exacto momento em que se torna conhecido?"

Dubstep na Tate ModernHá entusiasmo nas suas palavras e percebe-se porquê. Depois de viver na sombra, o dubstep está a alcançar uma visibilidade que ninguém previa há meses. Já não é apenas música de clubes de dança que cheiram a mofo, também frequenta a Tate Modern. Não é só capa de fanzines escritos por fãs ou motivo para trocas de opinião em blogues. É também fundamento para textos reflexivos em revistas de arte, como a americana Artforum. Até a circunspecta inglesa The Wire, quase sempre conservadora quando se trata de pensar factos e músicas urbanas, está rendida. "Deve ser o poder do baixo", troça Mala.
No dubstep a linha de baixo é capital. É a potência dos graves que guia o ouvinte e o submerge num híbrido sonoro que tem as suas raízes no dub jamaicano, parente instrumental do reggae, ou no drum & bass, UK garage e grime britânicos, géneros da mesma família que integram o confuso mapa das músicas de expressão urbana, baseados em padrões rítmicos disfuncionais.
Ao contrário do kuduro, dançável e hedonista, assente em modelos rítmicos repetitivos adulterados do house, o dubstep não é fácil de dançar. É música de linhas de baixo encorpadas e ambientes industriais, contendo reverberações do dub e princípios rítmicos desconexos. Tudo a velocidade moderada. Quando há vozes, têm uma função performativa. "Eu sigo o baixo", tenta explicar Mala, "mas há quem prefira sentir as texturas. Não há regras", diz. É música que pode ser consumida em diversos contextos. "Agrada-me o vigor, os graves robustos que fazem vibrar os corpos, mas também a capacidade de se adaptar a diversos ambientes. É música que se pode ouvir sozinho ou em situações sociais. Posso ouvir essa música num poderoso sistema de som - e isso pode ser uma experiência física intensa - mas também posso desfrutá-la introspectivamente", dizia-nos [suplemento Y de 4 Agosto], o ideólogo do movimento, o académico, DJ e produtor Kode9.

Som do Sul de LondresNa companhia do declamador Spaceape, Kode9 é o responsável pelo recente álbum Memories Of The Future que, em conjunto com os registos de estreia de Burial, Boxcutter e Skream, são os principais responsáveis pelo reconhecimento global. A maior parte dos activistas do dubstep são provenientes do sul de Londres, onde residem numerosos ingleses de origem afro-caribenha, contribuindo para a popularidade das músicas jamaicanas.
"É sem dúvida um som de Londres", aceita Mala, "talvez porque a música incorpora elementos distintos de outras músicas. Reflecte a diversidade da cidade. Mas não sei porque é que as coisas começaram aqui e não noutro local. Talvez tenha a ver com o céu cinzento, com a luta, com pessoas que têm de pagar muito por um táxi. Tudo em Londres é uma luta."
Na capital inglesa, foram os eventos bi-mensais DMZ, dos Digital Mistykz (na foto em baixo) e Loefah, que se transformaram na principal montra do género. "Ao princípio havia pouca gente, mas agora há sempre uma fila lá fora", afirma Mala. "Não esperávamos, mas é agradável sentir que é possível criar uma atmosfera positiva, com pessoas diferentes entre si, que se deixam levar por um som que deve ser ouvido num grande sistema de som."
Há pouco mais de cinco anos, Mala compunha música com os amigos, no quarto, na periferia de Londres. Nos últimos meses descobriu que, no resto do mundo, há quem se interesse pela sua actividade. "Provavelmente tenho mais coisas em comum consigo do que com o meu vizinho", diz. O dubstep tem génese londrina, mas pode ser apreendido em todo o mundo. "No fundo, são pessoas respondendo a estímulos sonoros. É uma forma de expressão. Há pessoas que se sentam e gostam de pintar tranquilamente. Eu sento-me e componho um ritmo a partir das minhas experiências. Depois partilho-o com outras pessoas." Precisamente, como vai acontecer hoje, em Lisboa.

BURAKA SOM SISTEMA + DIGITAL MYSTIKZ Vs. LOEFAH feat. MC SGT + SELECTA LEXOLISBOA Ateneu Comercial de Lisboa - R. Portas de Santo Antão, 110.
Hoje às 23h. Bilhetes
a 10 euros.

Sugerir correcção