Rui Rio, a genealogia da moral pública

Dizer que o despacho é um "exemplo" para o país
só pode fazer sentido numa cabeça povoada
pelos fantasmas da perseguição e da intolerância

Rui Rio anunciou na semana passada mais um contributo da sua genialidade política para o progresso da nação. De forma a acabar com a "perversa cultura de mão estendida", para erradicar o "preocupante fenómeno de desajustada subsidiodependência" que se lhe afigura "castrador do desenvolvimento", o presidente da Câmara do Porto decidiu acabar com os subsídios. Tanta filosofia política vertida para um único despacho, tanta coragem concentrada numa acção que vai gerar óbvios protestos devem ter exigido ao autarca profundas reflexões. Ou talvez não. Em cinco anos de mandato, Rio jamais deu sinais de que uma medida deste alcance pudesse acontecer. Já tinha reduzido à míngua o orçamento para a cultura, já tinha manifestado o seu desprezo pelos criadores, já tinha até teorizado sobre a dicotomia entre pobres e artistas, os que precisam e os que recebem. A aprovação do despacho foi, ainda assim, um gesto intempestivo. Saber se o que moveu Rio foi o interesse público ou a obsessão que o leva a querer vergar os que ousam pensar de maneira diferente faz toda a diferença. E Rio dá a resposta, quando faz constar no despacho o escândalo de haver quem, "inclusive", recorre ao tribunal "para que lhe seja reconhecido o direito ao subsídio". Ou seja, Rio não tolera que alguém confunda esmolas com direitos. Não interessa que o subsídio em causa, de 25 mil euros, tivesse sido, de facto, prometido ao Teatro Art"Imagem, que organizou um festival em que o logótipo da câmara apareceu com o destaque negociado; pouco importa que o Teatro Art"Imagem estivesse, de facto, para receber a verba prometida em Outubro. E, muito menos, não convém divulgar que o pagamento da promessa não aconteceu apenas porque, num gesto de dignidade, os dirigentes da companhia recusaram rubricar um protocolo com uma cláusula censória que os obrigava a "abster-se de, publicamente, expressar críticas que ponham em causa o bom nome e a imagem do município do Porto".
Dizer que o despacho é um "exemplo" para o país só pode, por isso, fazer sentido numa cabeça povoada pelos fantasmas da perseguição e da intolerância. O que, no seu teor, sobra em ressabiamento, falta em dimensão cívica. Nada de novo, aliás. Há anos que Rio tenta, por exemplo, condicionar a independência de todos os jornais com redacções importantes no Porto. Mas, neste caso, deu conta que, em Portugal, não há lugar para "queridos líderes" e tentou contornar a liberdade de imprensa investindo em spin doctors que tutela e em ecrãs espalhados pela cidade nos quais veicula a verdade oficial. No caso da cultura, a tentativa de esmagamento de um pensamento próprio fez-se de forma menos subliminar. Só se dá esmola a quem a merece. E só a merece quem não critica.
Como, felizmente, houve quem dissesse "não", como José Leitão do Art"Imagem, ou Arnaldo Saraiva, da Fundação Eugénio de Almeida, Rio decidiu acabar com os subsídios. Sabendo a história, dizer que esta medida revela preocupação com o dinheiro dos contribuintes é grossa mistificação. O que está em causa é uma atitude persecutória de um político a quem falta cultura cívica e tolerância democrática. O Porto, que, como dizia Garrett, troca os vês pelos bês mas nunca a liberdade pela servidão, tem um homem assim à frente da câmara.

Sugerir correcção