Matthias Goerne sublime

Depois do subaproveitamento de Anne Sophie von Otter num programa ligeiro e comercial e de uma Barbara Hendricks em baixo de forma e estilisticamente errática, o Ciclo de Canto da temporada Gulbenkian proporciou finalmente um recital a sério. Mais do que um recital a sério, um recital sublime, com música de grande profundidade (de Mahler, Berg e Wagner) e a interpretação superlativa de Matthias Goerne e Eric Schneider.Goerne encontra-se em pleno auge das suas capacidades vocais e ocupa já um lugar tão destacado na história da interpretação do Lied germânico neste início do século XXI como o que os seus ilustres professores (Elisabeth Schwarzkopf e Fischer-Dieskau) ocuparam no século passado. A sua actuação surpreendeu pela nobreza da emoção e pela maturidade técnica e artística.
Nas canções da colectânea Des Knaben Wunderhorn, de Mahler, mostrou de imediato o seu imenso poder de caracterização de ambientes e a atenção meticulosa em relacção ao texto. Transmitiu-nos a dimensão bucólica, popular, amorosa ou irónica, mas foi em canções como Wo die schönen Trompeten blasen (a intensa e potencialmente trágica despedida do amado que vai para a guerra), Das irdische Leben (onde uma criança morre de fome antes de a mãe ter pão para lhe dar) ou em Urlicht (luz original), que atingiu o sublime. O piano é tão importante como a voz neste repertório e Goerne teve em Eric Schneider um parceiro ideal com uma intervenção crucial nos detalhes que ajudam a caracterizar cada expressão do texto e na transmissão dos estados de alma de cada canção. Com uma grande paleta de cores, ataques e articulações, substituiu com proficiência a orquestra nos Lieder de Mahler e Wagner.
Nas Quatro Canções op. 2, de Berg, que fazem a ponte entre o Romantismo tardio e o atonalismo, e nos célebres Wesendonck-Lieder, de Wagner, prenúncio da paixão avassaladora do Tristão e Isolda, Goerne foi mais uma vez lapidar. A Ode à Esperança, de Beethoven, como encore encerrou um recital inesquecível, mas na quinta-feira (com repetição na sexta) o barítono alemão regressou para se apresentar com a Orquestra Gulbenkian num dos mais angustiantes ciclos de Mahler: os Kindertotenlieder, sobre poemas de Friedrich Rückert, onde atingiu um poder de introspecção comovente (por vezes a roçar o calafrio). Na última canção (In diesem Wetter, in diesem Braus) o seu belíssimo timbre de tons aveludados tornou-se rude para transmitir as zonas mais densas e sombrias da tempestade na revolta contra o destino da morte e iluminou-se de forma etérea na última estrofe para evocar o repouso das crianças na paz de Deus. A Orquestra Gulbenkian correspondeu bastante bem ao desafio, revelando com certa clareza as texturas camarísticas desta obra. Goerne parace ter inspirado os instrumentistas e o maestro Lawrence Foster que, de seguida, nos ofereceram uma veemente interpretação da Sinfonia nº8, Incompleta, de Schubert.

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